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Courses and events

Crónicas de uma viagem à Índia
Ana Sereno
21-04-2009


Pela segunda vez aterro no aeroporto Indira Gandhi, Delhi. Na primeira, há oito anos atrás, estou com a minha mãe e preparamo-nos para uma aventura turística pelas principais atracções do Norte da Índia. Desta vez, sozinha, os objectivos são outros. Passear também, mas sobretudo estudar.

 

Contrariamente ao que esperava, e ainda que sejam duas da manhã, o aeroporto está calmo. O ar quente abraça os visitantes para deleite de quem vem do frio. O cheiro entranha-se e, então sim, é impossível confundir o lugar, estou na Índia!

Depois de uns dias em Delhi, com passagem pela obrigatória Conaught Place, Janpath Road e o mercado tibetano, Old Delhi India_2009_052_1 e Akshardam Temple, o maior templo hindu do mundo recentemente construído (http://www.akshardham.com/), seguimos viagem rumo ao Punjab. De Delhi importa salientar a recepção calorosa dos meus anfitriões Deepali,Varun e a simpática filha deles Lokshree. Esta família indiana depressa se transforma na minha família também. O cuidado e o carinho com que recebem os desconhecidos portugueses não têm limites e estaremos para sempre em dívida perante tamanha generosidade e entrega. A hospitalidade indiana é um facto incontornável, que se confirma em cada um dos locais por onde passamos.

 

Passo a apresentar os meus companheiros desta primeira etapa da viagem com destino a Amritsar: Miguel Homem, Cátia Meirinhos (a nossa arquitecta emigrada e vinda directamente de Abu Dhabi), Pedro Kupfer, Ângela Nardi e Nani (amiga brasileira do casal).

De madrugada, dirigimo-nos ensonados para a entrada do condomínio em Noida, fora de Delhi, para aguardarmos o táxi chamado de véspera, para uma hora mais do que razoavelmente segura para evitar potenciais atrasos. Em boa hora o fizémos! O referido táxi nunca apareceu e aqui, se dúvidas havia, confirmamos que estamos na Índia – o país onde nada acontece conforme o previsto. Mais uma vez, cabe-me aqui elogiar a família indiana que prontamente se disponibilizou para nos resolver o problema com Varun a saltar da cama para nos conduzir à estação de New Delhi no seu poderoso Toyota, numa corrida contra o tempo. Uma maratona por entre a multidão que se acotovelava carregada ao longo da plataforma e chegámos à nossa linha (uma das últimas, claro está). No final, prova superada!

Seguiram-se mais de 6 horas de Swarna Shatabdi com destino a Amritsar. Pela janela vejo as pilhas de lixo  que se amontoam ao longo da linha do comboio e com elas os esfomeados cães vadios e as ossudas vacas sagradas. Lixeiras e casas-de-banho públicas a céu aberto são assim os trilhos dos comboios nas proximidades das estações. E, no entanto, alguns quilómetos à frente a vastidão do campo verde, salpicado aqui e além por uma ou outra árvore, emerge da neblina que filtra os raios de sol nesta amena manhã indiana. A Índia está aqui, na luz difusa que pousa sobre o comboio apinhado, na berma suja, nos olhos tristes do cão com fome, mas também no Namaste que nos saúda sorridente, na malagueta que nos surpreende na boca, na imagem de Shiva segurando firme o seu tridente que vemos ao longe, no cheiro a jasmim e a incenso. A Índia é tudo isto e tudo mais que os sentidos consigam apurar.

India_2009_030Para trás deixamos Delhi, a cosmopolita Delhi com os seus concertos de música clássica gratuitos, fazendo ver ao mundo que a cultura não tem preço, sobretudo quando se trata de preservar um património de inestimável  valor.

 Vemos chegar o chá, as bolachas, de novo o chá e o pequeno-almoço, os jornais em hindi ou inglês e depois de um cochilo, cuja duração não podemos precisar, eis-nos chegados a mais uma confusa estação.

 

Sem perder tempo algumas horas depois estamos a entrar no Golden Temple, local de devoção incondicional para a comunidade sikh e motivo da atribulada viagem acima descrita. Descalços, as cabeças cobertas, entramos num mundo que não nos pertence e que, ao mesmo tempo, nos é tão íntimo. Longa fila para entrar na enorme escultura de ouro (entenda-se enorme para escultura, pequena para edifício), que se ergue no meio do espelho de água formado pelo lago em cujas águas alguns se banham com as facas desembainhadas e presas nos turbantes[1]. Juntamo-nos à dita fila e com paciência avançamos até ser chegada a nossa vez e cumprirmos o ritual – mão no chão e depois no peito, reverência e respeito. Circulamos pelo interior ao som dos cânticos, das tablas e do harmónio. Sentamo-nos para meditar, para contribuir de alguma forma com a nossa energia para aquela energia maior, a da devoção, da entrega absoluta sem pôr em causa e de coração aberto. O templo foi construído com quatro portas, simbolizando a sua abertura a todas as religiões e a todos os que queiram entrar para meditar ou, simplesmente, ouvir as orações e sentir alguma paz.

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Turbantes de todas as cores entram e saem, é um ciclo constante de devotos que dia e noite, descalços, dão vida ao fluxo energético que mantém vivo o monumento do século XVII, considerado o mais sagrado dos lugares de culto desta religião uma vez que o seu eterno Guru, Sri Guru Granth Sahib está ali presente. Esta é a mais sagrada das escrituras Sikhs eternizada pelo décimo e derradeiro Guru - Sri Guru Gobind Singh que terminou a linhagem de Gurus humanos, elevando o texto sagrado Adi Granth a Guru Granth Sahib. As suas 1430 páginas contêm bhajans que descrevem Deus e o comportamento correcto a seguir por todos os Sikhs e até hoje permanece como a “personificação” dos 10 Gurus do sikhismo. Não podemos virar a página sem referir a espectacular cantina do complexo do templo, igualmente aberta 24 horas por dia para servir, sem qualquer custo, uma refeição a todos os que a ela se dirijam. Todo o trabalho desenvolvido no templo é voluntário  fazendo cumprir a missão de serviço (seva), um pilar desta religião.

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Do sikhismo preparamo-nos para mergulhar a fundo no hinduísmo, partindo com um novo destino e um novo meio de transporte (o avião). A nossa meta é Chennai, no Tamil Nadu. O que nos leva tão longe? Swami Paramarthananda, discípulo de Swami Dayananda cuja fama, pela clareza na forma de ensinar, chegou até nós. Vou com o Miguel, os outros companheiros de viagem seguiram diferentes rumos...

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Desde o primeiro momento sentimos que Chennai nos acolhe. Embora seja a primeira vez que a visitamos sentimo-nos confortados de imediato por uma força invisível, talvez o mar. Habituados a viver perto dele, sentimos-lhe de imediato a presença ao aterrar em Madras, nome original da cidade. Mais organizada, de um modo geral mais limpa, muito mais quente, esta cidade é famosa pelo seu tradicionalismo. Aqui não vemos uma única indiana de calças de ganga,India_2009_183 todas vestem saris ou kurtas e até os homens se matêm fiéis aos dhotis e aos lunghis (panos usados como saias, enrolados à volta da cintura). Os templos espreitam em cada esquina e nenhuma divindade fica de fora. Visitamos vários, inclusivamente o imponente Kapaleeswarar  dedicado a Shiva bem no centro da cidade e o Asthalakshmi de homenagem à Deusa Lakshmi em Elliot Beach. Ganesha não fica a perder com dezenas de templos espalhados pelas diferentes zonas da cidade.

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As aulas do Swami Paramarthanada são de manhã cedo, às 7 e ao final da tarde. Começam com pontualidade britânica e estão lotadas. Gostámos da forma clara, pragmática e da linguagem acessível com que este professor expôe o ensinamento. Apanhámos a última aula da Bhagavad Gita o que não deixou de ser curioso, afinal são anos de estudo e nós caímos lá mesmo no culminar dessa empreitada.

A acessibilidade deste Swami confirmou-se quando prontamente se disponibilizou para receber-nos em sua casa numa tarde dessa semana. Apostado em trazê-lo a Portugal, o Miguel viu nesse encontro a ocasião ideal para o convite. Lá fomos para nos depararmos com uma casa simples e despojada e com o Swamiji no meio dos seus estudos e leituras. Com a maior simpatia nos diz que embora tenha um sem fim de convites tem recusado todos, pois não tens mãos a medir ali mesmo na sua cidade, tendo reunido um grupo de mais de mil alunos o que o impede até de ensinar em retiros, pois estes limitam sempre o número de participantes. É assim que opta pelo esquema de duas aulas diárias ao longo de todo o ano, em espaços diferentes da cidade, permitindo que um maior número de pessoas possa assistir e enriquecer-se com as suas palavras inspiradoras. Bom, e é a velha história de Maomé e da montanha, que não importa agora detalhar, pelo que se ele não vem até nós, vale a pena ir até Chennai para conhecer este luminoso ser apostado no ensinamento do dharma. Deixamos a cidade felizes pela certeza de termos encontrado mais alguém em quem confiar os destinos dos nossos estudos.

 

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Regressamos a Delhi para uma breve paragem antes de nos dirigirmos ao último destino - a cidade dos Rishis e o ashram do nosso estimado Swami Dayananda. Aqui páro umas linhas para descrever a envolvência para depois me alongar na rotina do ashram.

 

A melhor forma de chegar a Rishikesh a partir de Delhi é sem dúvida de comboio até Haridwar e depois de táxi. A viagem dura, aproximadamente, 5 horas e existem dois comboios por dia a fazer o percurso.

India_2009_246Rishikesh seria mais uma cidade indiana não fosse o rio Ganges. As duas pontes pedonais  suspensas a considerável altitude são a imagem de marca dos dois bairros Ram Jhula e Lakshman Jhula, onde porta sim porta sim encontramos uma escola de yoga, um centro de reiki, de panchakarma ou de massagem ayurvédica. E se Ram Jhula se consegue manter mais ou menos tranquila, excepção feitas às irritantes motas que teimam em concorrer com vacas e peões nas ruas estreitas, buzinando de forma estridente, Lakhsman Jhula é uma feira de vaidades hippy. Estrangeiros de todas as origens e adeptos do peace and love com um charro na mão encontram aIndia_2009_185qui o paraíso das suas fantasias indianas. Apesar de tudo, daqui partimos para as praias mais a norte onde se consegue um merecido sossego para um mergulho nas águas gélidas, e aqui limpas, do Ganges longe dos olhares indianos perplexos pela visão de uma mulher em bikini. Com muitas livrarias e lojinhas de artesanato, Rishikesh é também o sítio ideal para a compra das lembranças made in India.

 

 

A chegada ao ashram é sempre um momento de prazer. A confusão e barulheira indianas ficam para trás, para nos entregarmos ao sossego do complexo erigido na margem do Ganges e sob o abraço protector das montanhas dos Himalayas. Até o branco que os estudantes usam ajuda a calmar os sentidos, neste caso o olhar, que repousa depois do turbilhão de cores absorvidas lá fora. Branco e Laranja (a cor usada pelos Swamis) são as cores predominantes no Arsha Vydia Pitham, o Ashram de Swami Dayananda, onde nos instalamos.

Do complexo fazem parte o templo, a sala de aulas, os edifícios de alojamento, incluindo a casinha cor-de-rosa do Swamiji, entre o templo e a sala de aulas, e a cantina. A partir de umas escadas é possível descer directamente até ao rio para os banhos purificantes, ou tão simplesmente para sentar a meditar ouvindo o curso da água.

India_2009_317A rotina é simples: meditação às 7 da manhã seguida de pequeno-almoço (o indiano, claro está, com comida a sério e bem picante logo para despertar) e de um bom intervalo para quem quiser descansar, praticar yoga, frequentar as aulas de Sânscrito ou de cântico védico. Às 9h temos a primeira aula do dia e às 11h30 a segunda, seguida do almoço. À tarde voltamos a ter um bom intervalo, pois a aula é só às 17 horas, o que nos permite descansar, estudar, participar em alguma das referidas actividades paralelas ao curso, ou sair para passear em Ram Jhula ou Laksman Jhula. À noite, às 20h30 depois do jantar, temos o Satsanga, onde fazemos kirtan e onde o Swamiji responde pacientemente à infinidade de questões que são deixadas ao longo do dia numa caixinha para o efeito. Diariamente realizam-se ainda dois pujas às 5 da manhã e às 6 da tarde, com recitação de cânticos no templo, arati (ritual do fogo) e distribuição de prasadam.

 

 

O estudo do Vedanta implica uma grande capacidade de concentração da nossa parte, pelo que é bom aproveitar os momentos livres para descansar e, sobretudo, reflectir sobre aquilo que ouvimos, acomodando os conceitos novos no nosso esquema de pensamento. O texto escolhido pelo Swamiji para o curso de 14 dias que fiz não foi dos mais fáceis. A Rama Gita, ou a canção de Rama, é um diálogo entre Shiva e a sua consorte Parvati que, desejosa da sua atenção lhe pede para contar a história de Rama e seu irmão mais novo Laksmana. Rama vai respondendo às questõe do seu irmão e fala-lhe dos dois estilos de vida possíveis para seguir o caminho do auto-conhecimento – a via do karma yoga e do Sannyasa e descorre sobre os conceitos de karma, sobre a importância do estudo, da confiança no ensinamento e nos textos, do papel do Guru e claro sobre Ísvara e Moksha. O Swamiji seguiu o texto verso por verso, alongando-se sempre que o tema pedia e aproveitando sempre para contar as suas piadas que ao fazerem-nos rir acabam por fazer-nos digerir com maior facilidade o ensinamento. Sim, porque apesar de terem realmente piada as histórias do Swamiji têm sempre uma moral, uma função didáctica. É delicioso vê-lo rir no final de cada piada e mesmo que não tenhamos entendido completamente o seu significado (às vezes ele gosta de misturar um pouco de hindi para comunicar com a plateia maioritariamente indiana) rimos com vontade da sua expressão de inocente marotice.

Durante o curso foram servidos dois bandharas. Nesta ocasião, todos os sadhus da cidade são convidados para comer no Ashram e é-lhes servido um almoço pelos Swamis e voluntários, enquanto se entoam mantras. Chegam todos juntos, ao mesmo tempo, como um manto de cor laranja que se estende no chão e todos juntos, ao mesmo tempo também vão embora, levando consigo a cor e deixando para trás um enorme vazio cromático.

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Durante o curso os portugueses tiveram o privilégio de um encontro com o Swami Dayananda. Ele próprio pediu para nos conhecer e mostrou-se muito orgulhoso pelo facto do Miguel ter conseguido levar tão longe o Vedanta. Éramos apenas 4 (eu, o Miguel, a Daniela e o António) mas nunca aquele ashram recebera tantos portugueses. Neste encontro, o Swamiji deixou claro que quer voltar a Portugal para ensinar, pois considerou que este é um país bom para o fazer, elogiando a capacidade de racicínio dos portugueses, ao contrário da emotividade dos espanhóis! Com uma memória impressionante o Swamiji recordou-se da entrevista que lhe tínhamos feito por cá e sugeriu que lhe fizéssemos outra. No dia seguinte lá estávamos a ser recebidos por ele para generosamente nos responder às nossas questões, cancelando todos os seus outros compromissos. É por isso com enorme gratidão e respeito que publicaremos em breve mais uma entrevista com o querido Swami Dayananda.

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Do regresso apenas a sublinhar o facto de que vale mesmo a pena fazer a viagem para Delhi de comboio. Vim de carro e demorei 8h30 de interminável cansaço provocado pelos solavancos da estrada, para chegar novamente onde tudo começou, o aeroporto Indira Gandhi, desta vez nada calmo mas lotado de estrangeiros que, como eu, deixavam a Índia naquela madrugada de 31 de Março.

Por fim, deixo-vos esta imagem que me ficou no coração e que resume o que é a Índia para mim:

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[1] Os 5 k dos sikhs correspondem aos 5 símbolos que os identificam: kesh (cabelo por cortar), kanga (pente de madeira), kaccha (roupa interior), kara (pulseira) e kirpan (espada).

 


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