Esta semana fui surpreendido por uma cena não muito comum em uma prática que estava guiando aqui no Rio.
Os alunos já haviam chegado e se sentado. Já havíamos fechado os olhos e então, eu colocava o assunto sobre a qual a prática seria baseada, guinado as pessoas em uma breve reflexão.
Normalmente sempre chega um ou outro atrasado e não conseguimos dar tanta atenção à esta pessoa se ela é novata pois os outros já estão envolvidos no silêncio e reflexão de suas práticas.
Pois bem, neste dia, ao concluir a reflexão inicial, abrimos os olhos para começarmos a rotina de ásanas, e para minha surpresa, me deparo com uma pessoa toda vestida de laranja. Logo reparei que era estrangeiro, e imaginei que fosse um destes renunciantes itinerantes que viajam por aí espalhando seus ensinamentos.
A princípio fiquei um pouco “tenso” , tendo um renunciante na sala, uma pessoa que deva possuir um certo conhecimento sobre yoga, medi ainda mais as minhas palavras e conduzi a prática com bastante calma.
Nos primeiros movimentos que o vi executar, rapidamente me veio à memória as pessoas que vi praticar ásanas na India. Cenas que nunca esqueci e que certamente transformaram a minha prática pessoal. Lembro de ver pessoas executando ásanas sem a menor preocupação que temos com o alinhamento, mas extremamente entregues àquele momento de “prece” em movimento. De fato, uma das coisas mais lindas que já vi.
Fiquei imaginando se deveria fazer algum ajuste, e como agiria se fosse ajustá-lo. Será que poderia tocar num renunciante? Como deveria tocar? Talvez só falar? Por que ajustar? Afinal se era uma prática igual as que eu tinha visto na India, realmente não merecia nenhum ajuste.
Observei bastante a prática até ter minhas primeiras impressões. Aproximei-me dele e a primeira coisa que pude reparar era que algo cheirava mal. Logo um renunciante. Tudo bem...vá la´...renunciar, mas abrir mão de um valor tão simples quanto Sauchan, é demonstrar falta de respeito por aqueles que estão ali dividindo o mesmo espaço que você. E acima de tudo falta de conhecimento.
Então meu alerta se ligou. E observando ainda com mais atenção pude perceber que em várias posturas que ele fazia, seus olhos se arregalavam, sua respiração se acelerava e ele lutava para se acomodar.
Achei aquilo tudo muito estranho, pois a prática não era forte e nem acelerada, muito menos com posturas acrobáticas. Logo pensei: “Pronto, dei de cara com um renunciante de araque e fã de kundalinite!”
Realmente minha observação não falhou. Conduzi a prática até o fim. Tudo correu perfeitamente bem, mas a história ainda não havia acabado. Quando terminamos a aula, o tal renunciante veio me fazer várias perguntas sobre como conduzia a prática e etc...
Ele me confessou que gostava muito da prática no estilo ensinado por Swami Sivananda. Alegava que gostava de permanecer em cada postura por períodos prolongados, como 5 minutos. E que junto desta permanência, fazia uma visualização dos chakras e repetia mentalmente o bija mantra de cada um deles.
Para completar a sua descrição do resultado desta prática, novamente arregalou os olhos dizendo que aquilo dava o “maior barato”, como quem explica uma experiência com alucinógenos. De fato algo não cheirava bem.
Continuando a história, veio me dizer que pertencia a um grupo bastante conhecido de yoga. Um grupo que segue um tal de caminho da felicidade e que tem toda uma “hierarquia” na sua organização e que entre outras coisas, você mesmo pode pesquisar e tirar suas conclusões.
Eu já tinha sacado tudo, mas fiquei quieto para ouvir até onde tudo aquilo ia chegar. E como eu sabia...a lugar algum.
Moral da história:
Todo praticante e estudioso sério de yoga entende muito bem que o objetivo de uma vida de yoga não é ter experiências incríveis com manipulações dos chakras. Patanjali nos alerta sobre isso no capítulo 3 do Yoga Sutras quando fala sobre os siddhis. Todos estes tipos de experiências acabam gerando um apego e identificações exageradas ao ego, que por sua vez se assume como o grande ator desta vida.
Um praticante sério entende que a meta de uma vida de yoga é moksa. E não o cultivo de experiências.
Os Vedas nos ensinam que qualquer tipo de experiência gera um fruto. E que todo fruto criado a partir de uma experiência tem início, meio e fim. Ou seja, é limitado por tempo e espaço. Moksa é exatamente o oposto disso. É o conhecimento, a realização de que não somos limitados. E por sua vez, não é fruto de uma ação, de uma experiência.
No fim do primeiro capítulo da Taittirya Upanisad existe uma discussão entre Shankara, que defende o conhecimento como instrumento para a liberdade e os Karmatas, que se apóiam numa visão distorcida sobre o valor dos rituais prescritos nos Vedas:
Como realizar Moksa?
Através da ação, ou então uma combinação entre ação e conhecimento (ação com base no conhecimento ou conhecimento com base na ação) e, por fim, somente o conhecimento.
Deve-se estudar os Vedas por inteiro, inclusive as Upanisads. Estuda-se todos os Vedas para que depois possa realizar os rituais. Os Vedas têm o foco em karma (ação ritual) karma kanda.
Todo o estudo está focado nestes rituais que conduzem à liberação. A liberação desejável é a liberação eterna.
Desenvolveremos isso mais à frente.
A discussão sobre a liberação através da ação. (Shankara e os karmatas)
Para Shankara, tudo aquilo que é produzido através de uma ação tem um fim.
Moksa surge de ações que não são impulsionadas pelo desejo, evitando fazer aquilo que não deve ser feito.
As ações devem ser apenas aquelas ações diárias obrigatórias (os rituais, ou o svadharma, os seus deveres). Assim papam não será produzido.
A liberação surge por esta não acumulação de papam. Pois você não se amarra mais aos frutos negativos das ações.
Porém, mesmo assim, acumulando punyam você volta a nascer. E ainda existe Sancita karma. E este Sancita, esta bagagem, ainda será a causa de um novo nascimento. Estes nascimentos ocorrerão até o esgotamento total de sancita.
Ação com base no conhecimento
Moksa surge através da ação com base no conhecimento. Existe uma conexão de ação com conhecimento. Existe a capacidade de produzir outro efeito. É dito que o iogurte produz febre. O iogurte produz a febre, mas se adicionar açúcar ele não permanece mais tão acido e não produz a febre. São analogias usadas para exemplificar a ação unida ao conhecimento.
Neste caso, a ação produzida tem um fim. Então este resultado que é criado não é permanente.
As palavras dos Vedas não têm a intenção de criar ou produzir uma coisa nova. Têm somente a intenção de apontar aquilo que já existe. Os Vedas revelam, não produzem.
Se moksa é eterno, não pode ser produzido a partir de nenhum ritual.
O meio para moksa é conhecimento. Não há nada que uma ação realize para revelar a liberdade. O obstáculo real para a liberação é a ignorância.
O resultado da ação é diferente de moksa. Logo, as duas não podem estar juntas. A ação está ligada ao corpo, a mente ou ao emocional.
O resultado da ação é de 4 tipos:
A criação (utpati) – uma ação pode criar uma coisa nova.
Purificação (samskara) – a purificação do corpo
Modificação (vikara) – a modificação de um objeto
Alcançar alguma coisa (apti) – se mover de um lugar para outro
Estes resultados são todos diferentes de moksa.
Mas temos Srutis que falam sobre ações como formas de alcançar um resultado. A Katha Upanisad, por exemplo, diz que “pelo caminho do sol, se alcança um resultado”. Mas em nenhum eles dizem que este resultado é diferente do que você já é.
A Sruti fala sobre rituais que geram resultados desejáveis. Mas apegar-se constantemente a estes resultados mantém a pessoa condicionada. Ela age pelo desejo de alcançar aquele resultado que lhe traz conforto ou prazer (artha, kama)
Atma não é um lugar ou objeto a ser alcançado, pois já está em todo lugar. Então como posso dizer: “ir para algum lugar?”A pessoa que está indo e o lugar que ela vai, são os mesmos. O problema é não reconhecer isto.
Através deste argumento entendemos que moksa não é algo a ser alcançado. Moksa é meu estado natural. Porque um objeto a ser alcançado é sempre diferente de mim, ou seja, limitado.
Um lugar que seja para ser alcançado por um “viajante” para onde ele está indo, deve ser diferente do viajante. Pois senão, não há a necessidade de ir a lugar algum.
O papel do Veda é revelar aquilo que os nossos sentidos e mente não podem e não conseguem perceber. Veda é pramana para o Ser. Veda toca em dvaita e advaita. Sem negar a dualidade da nossa existência individual, o Veda é autoridade para a revelação daquilo que não é dual.
O argumento do karmata é que eles dizem que existem textos que falam sobre o valor da ação. Como o Veda fala sobre ação, eles dizem que os jnanis estão indo contra o Veda.
A Sruti fala em ir (gati) como o fruto da ação. São as partes dos Vedas que falam sobre as grandezas (ausvarya) alcançadas pelas ações. Então os karmatas dizem que o argumento dos jnanis é contraditório.
Mas para os jnanis, qualquer outro lugar (loka) que se alcance é apenas transitório e, portanto não é moksa.
Estes textos que falam em gati estão apenas focando no fruto da ação (karya Brahma). Então os objetos alcançados também são Brahma. Mas isto não é o fim. O Veda vai mais fundo. Então não se pode considerar somente esta primeira etapa.
Na verdade a realidade é uma só, não seguida de uma segunda. E neste conhecimento se vê que Brahma é a realidade única, apesar das diferentes manifestações. Este é o ensinamento da Sruti.
Qualquer tipo de combinação entre ação e conhecimento é impossível porque a natureza de ambos é oposta.
O conhecimento é aquele que o assunto é a dissolução total do objeto e suas diferenças. O conhecimento mostra que as diferenças são apenas ilusórias. E em relação à ação o conhecimento se opõe. A ação é alcançada através de alguém, ou seja, alguém faz alguma coisa para alcançar um objetivo. Então neste caso vemos 3 objetos diferentes (ator, ação e objeto a ser alcançado).
Quando se fala em conhecimento não há diferença, pois aquele quem conhece, conhece a si mesmo.
Todo este raciocínio vai nos levar a conclusão de que um destes dois é falso. E o que é falso é o dual, pois é aparente.
Tudo bem que a dualidade existe, é natural, mas não é real. A dualidade é fruto da ignorância e por isso mesmo dizemos que ela é real.
A Sruti fala em dualidade, ela apenas supõe que a realidade poderia ser dual, mas nunca a aceita.
Shankara, então cita as Upanisads:
Aquela pessoa que vê a dualidade como sendo o real alcançará a morte (Katha upanisad). Ou seja, morrerá e renascerá várias vezes, pois está identificada com o corpo.
Quando a pessoa enxerga apenas a dualidade, vê muito pouco, pois não consegue enxergar o todo.
Se eu sou diferente de Isvara, conheço apenas aquilo que é limitado.
Aquilo que tem a característica de ser um (que não é seguido de um segundo, único) é a consciência (Brahman). Este tem a característica de ser real, é sempre presente, nunca desaparece.
O que deve ser conhecido de fato é aquilo que é um (Brhadaranyaka upanisad).
Tudo aquilo que existe e é classificado de formas diferentes é Brahman (Mundaka upanisad).
Para Shankara, os rituais não serão possíveis se você não considerar a diferença de sujeito e objeto (quem faz e o fruto do ritual). Também não poderá fazer o ritual sem que seja oferecido a uma deidade. E então aí vemos uma dualidade. Uma expectativa de que o resultado seja dado por esta deidade a quem se ofereceu o ritual.
Aquele que faz o ritual se vê separado daquele quem oferece o fruto da ação.
Então tudo isto vai contra as frases citadas pelas Upanisads.
Nós escutamos, nos Vedas, milhares de maneiras que falam sobre o conhecimento na negação da visão da dualidade. É dito que não existe separação entre o indivíduo e o todo.
Existe, então, uma oposição entre conhecimento e a ação. Portanto não há como juntar coisas de natureza oposta.
Então, para Shankara, a visão dos karmatas que dizem que Moksa surge da união da ação e do conhecimento, não é possível.
Os karmatas dizem:
Considerando que as ações são comandadas pelos Vedas, Shankara contradiz os Vedas. Negando o agente da ação e o ritual, você afirma que tudo é falso. Assim como, o conhecimento falso sobre a serpente (e a corda). Destruindo o conhecimento falso, nós, então temos o conhecimento da realidade. Se for assim, eliminando todos estes, a conseqüência disto seria uma oposição (uma contradição). Porque você estaria dizendo que as Srutis que comandam ações, não teriam significado. Se ações são indicadas, devem ser feitas.
Shankara diz:
A Sruti diz que o ser humano deve se libertar do Samsara. Com isto em mente o próximo ponto importante para a Sruti é a renuncia (nirvrtti) através do conhecimento. Pois a ignorância é a causa do Samsara.
O problema é a interpretação do Veda
No início do capítulo 15 da Bhagavad Gita, o Samsara é comparado à figueira que tem as raízes apontadas para cima e as folhas para baixo.
As folhas representam as milhares de formas através das quais o tronco desta árvore se nutre. A figueira tem um tronco formado por um emaranhado de troncos menores. Este emaranhado representa o quanto nos embolamos nas nossas vidas. O nosso Samsara.
E as raízes no alto (urdhvamula) representam a origem de tudo e que deve ser alcançada (conhecida) que é Brahman.
Então o Veda pode “proteger” o Samsara, se aquele que está tentando interpretá-lo, vê nas ações a ferramenta para a liberdade.
O Veda liberta se aquele que o estuda entende seu verdadeiro significado.
Concluindo:
Uma pessoa que veste laranja deveria ter mais respeito por este conhecimento. O laranja representa tapas, o fogo, o empenho que aquela pessoa está realizando em busca do conhecimento, em busca da liberdade. Não em busca de simples sensações físicas ou mentais, que além de tudo são completamente subjetivas. Nós mal conseguimos ter controle sobre nosso corpo físico. Mal conseguimos sentar quietos para meditar. Quiçá ter conhecimento de causa sobre assuntos que praticamente ninguém, hoje em dia, tem autoridade para falar.
É nesta hora que acabamos separando o joio do trigo. Não somente o indivíduo, mas também a “linhagem” que ele está ali representando.
Um renunciante renuncia. Abre mão dos frutos das ações por causa do conhecimento. Mas já que vive entre nós, pelo menos não deveria abrir mão de um bom sabonete.
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