Um dia destes, uma pessoa me perguntou sobre o nosso mestre: “Será que ele é iluminado?”. A pergunta é bastante subjetiva, e revela a maneira em que muita gente olha para os mestres. Não há um teste que possa ser aplicado para determinar se alguém é iluminado ou não. De qualquer maneira, antes de responder à pergunta, teríamos que ver o que significa ser “iluminado” para a pessoa que coloca a questão.
Iluminação = poderes paranormais?
Na cultura do Yoga estamos expostos a textos que falam de maneiras muito diversas sobre a iluminação. Alguns desses livros se atêm à descrição do que aconteceria como o mukti, aquele que alcançou a libertação, em termos de transformação interior, plenitude constante e outras conquistas associadas com moksha. Todavia, são descritos em detalhes os diferentes graus de samadhi e o estado nirvikalpa, quando acontece a cessação voluntária da atividade cerebral, por si mesmo uma façanha digna de menção.
Outros textos já se dão outras liberdades poéticas e falam abertamente sobre pessoas que levitam, conversam com espíritos, ou lêem o pensamento dos demais. Há ainda outra categoria de textos que narram prodígios como yogis viajando para outras dimensões, materializando objetos e realizando outros prodígios, que são verdadeiras viagens de LSD ou, no melhor dos casos, pura fantasia.
Agora, é preciso separar o que seja uma licença poética do que é a realidade. Lendo, por exemplo, a biografia do yogi tibetano Milarepa, vemos que a pessoa que escreveu esse texto fala sobre os siddhis, poderes paranormais, com muita naturalidade. Se a intenção de incluir uma descrição desses poderes é chamar a atenção do leitor para aquilo que o yogi quer ensinar em termos de compaixão, não-violência, valores ou o que for, então a liberdade poética se justifica.
Como nenhuma das aparentes façanhas desses yogis contemporâneos foi feita de maneira isenta, em condições controladas, para demonstrar que a pessoa, inequivocamente, possui algum poder especial, podemos considerar que a quase totalidade desses fenômenos sejam truques de prestidigitação ou armações para enganar os crédulos.
Não obstante, muitas das pessoas que praticam Yoga hoje em dia consideram que os sinais de poderes paranormais sejam uma espécie de garantia de que o yogi em questão seja iluminado. Sabemos positivamente que ambas as coisas não estão, de fato, ligadas. Podemos afirmar isso, pois existem diversos exemplos na literatura do Yoga que nos mostram que, o fato de alguém, por exemplo, conseguir deixar de respirar por longos períodos, ou parar o batimento cardíaco, não torna necessariamente essa pessoa compassiva, ou sequer com um comportamento minimamente ético.
Tal é o caso do yogi Ramdass, narrado na introdução do livro Patañjali et le Yoga, por Mircea Eliade, que conseguia ficar sem respirar por mais de 40 dias, mas fugiu com a mulher do vizinho logo depois dos experimentos feitos com ele por um grupo de médicos britânicos. Um guru muito popular na década de 1970 surpreendia os pesquisadores com seu assombroso domínio do batimento cardíaco, que conseguia controlar à vontade, mas, ao morrer, tinha uma longa réstia de processos por estupro e assedio sexual das suas alunas. Portanto, pelo menos nós, não vemos a conexão entre esse tipo de siddhi e a iluminação.
Por outro lado, os Shastras do Yoga nos dizem o seguinte, em relação a esses poderes: “Os siddhis, poderes psíquicos, se revelam contraproducentes para o yogi que pretende estar totalmente absorvido em Parabrahman, o Ser, ilimitado e eterno”. Amanaska Yoga, I:85.
“O yogi não deve mostrar seu poder a ninguém. Se o fizer, agirá como um idiota, um louco ou um surdo. Ele precisa manter seu poder secreto. De outra forma, sem dúvida, terá muitos discípulos, mas ficará demasiado ocupado com o seu trabalho e não terá tempo para a prática pessoal”. Dattatreya Yogashastram, 201-207.
O papel do guru.
Começamos a compreender o assunto olhando para o significado da palavra guru: a sílaba Gu indica escuridão ou ignorância, o principal motivo para não reconhecermos a nossa própria Natureza; a sílaba Ru indica aquele que tem a capacidade de remover esta escuridão.
Ou seja, o guru é aquele que possui a capacidade de eliminar a ignorância que temos em relação a algum objeto. Neste caso, estamos falando da ignorância em relação a nós mesmos, àquilo que somos. Mas, literalmente, a palavra guru, significa “pesado”. Se relacionarmos este peso a uma pessoa, podemos dizer que esta pessoa tem o “peso do conhecimento.”
Então, este privilégio de possuir o peso do conhecimento não é algo exclusivo de líderes espirituais, mas de todos aqueles que têm a capacidade de nos esclarecer em relação a algum assunto que ainda ignoramos.
Ao longo da nossa história tivemos vários gurus. No campo da ciência, filosofia, etc. Pessoas que enxergavam coisas que ainda não eram óbvias para a maioria, e que transformaram para sempre vidas, comportamentos, culturas e teorias.
Podemos dizer que há muitos gurus ao longo de nossas vidas, dependendo do estágio em que estamos e também dos assuntos que nos interessam. Nossos pais são nossos primeiros gurus. Educam-nos, ensinam os primeiros passos. Depois vêm nossos professores. Aprendemos a ler, escrever, realizar cálculos. Conhecemos a história do mundo em que vivemos, etc. Todos assuntos que antes ignorávamos. O mais interessante em tudo isso, não é o fato de que eles saibam sobre coisas que ignoramos. Mas a capacidade que estas pessoas têm de lançar a luz do conhecimento delas sobre nós.
Mesmo ontem, meus e amigos e eu, tivemos a oportunidade de estar na frente de um iluminado guru. Já passadas às dez horas da noite, após um dia exaustivo de estudos, um de nós resolveu lançar uma pergunta ao nosso mestre com o simples propósito de descontrair a sessão de perguntas sobre as aulas do dia. Sabíamos que ele riria da pergunta e não tomaria aquilo como zombaria, pois seu bom-humor é inabalável.
Aqui na Índia, o esporte nacional é o cricket. E nosso mestre é fascinado pelo esporte. Mas como ignorantes no assunto, acabamos não entendendo nada do que acontece no jogo. Então, mesmo após nos proporcionar todo um dia de profundos estudos, Swami Dayananda, sorridente, explanou o jogo por mais de quinze minutos para a feliz platéia de alunos brasileiros.
Um guru não é aquele que se faz de superior por causa do conhecimento. Um verdadeiro guru, não faz shows de mágica ou performances para impressionar os demais. Seja qual for o assunto, o guru é aquele que tem a compaixão para acabar com o sofrimento dos demais, e faz isso ensinando.
Definindo a iluminação.
À pergunta que me foi dirigida, “Será que seu mestre é iluminado?”, é obvio que a minha resposta é um categórico “sim!”, uma vez que venho todos os anos para a Índia para aprender com ele. Se não achasse que meu mestre é iluminado, se não percebesse o bem que me faz aprender com ele, o que ele tem para ensinar e o que eu tenho para me inspirar com seu exemplo, ficaria em casa tranquilamente.
Ora, se existe um termômetro que possa medir se alguém é iluminado ou não, esse termômetro é a compaixão que a pessoa mostra para com todos os seres vivos. Isso, meu mestre tem de sobra. Mas vamos às definições: iluminação é uma palavra portuguesa usada como sinônimo de nirvana ou moksha, que são termos técnicos do sânscrito que definem o estado de liberdade. Vejamos, de perto, o que nos dizem as escrituras do Yoga a respeito desse estado:
“Quando os cinco sentidos e a mente estão parados e a própria razão descansa em silêncio, começa o caminho supremo. Esta firmeza calma dos sentidos chama-se Yoga”. Katha Upanishad, VI
“O yogi que possui a iluminação completa vê, pelo olho do conhecimento, o universo inteiro como seu próprio Eu e vê a si mesmo como o Uno presente em tudo”. Atmabodha, 47
“Naquele que tiver controlado totalmente a instabilidade, ocorre uma identificação entre o observador, o objeto observado e o ato da observação, assim como o cristal se identifica com a cor do objeto próximo”. Yoga Sutra, I:41
“Todas as coisas se revelam pelo conhecimento do Ser. O Ser se revela por todas as coisas. Como a natureza desses dois aspectos é a mesma, deve-se meditar sobre o conhecedor e o conhecido como sendo um só”. Vijñanabhairava, 137
Conclusões.
Outra definição de iluminação, pouco ortodoxa mas muito clara, foi dada por Swami Dayananda, nosso mestre, num satsang recente: “A causa do sofrimento é o desejo, e o desejo nasce do fato de não nos sentirmos completos do jeito que somos. Essa distorção, esse sentimento de incompletude nasce, por sua vez, da ignorância: um bêbado, em casa, pede para um amigo: “me leve para casa, me leve para casa!” O outro sai com ele, dá uma voltinha pela rua e entra de novo.
“É isso o que o professor de Vedanta faz com os alunos: mostrar para eles que já estão onde precisam estar. Só precisam se dar conta disso. Só precisamos reconhecer que, apesar desse sentimento de incompletude, somos completos e plenos dentro do que somos. Moksha, a iluminação é, basicamente, liberdade do sentimento de querer ser completo, já que nos vemos incompletos, como o bêbado da piada”. Então, um mukti, um iluminado, é alguém que se vê livre desse sentimento de incompletude.
Nem tudo o que brilha é ouro no mundo da espiritualidade. As definições dadas pelo Shastras acima citados nos mostram claramente o que é iluminação. Se forem dadas outras definições que não tenham a chancela das escrituras, seria questionável a validade da pergunta do título deste texto. Pelo menos, questionável à luz da tradição do Yoga. Namaste! |