Tornei-me vegetariana há apenas seis meses. Deixei de comer carne há dois anos mas continuei a comer peixe ocasionalmente. Não queria que a mudança fosse demasiado brusca para o meu organismo e também na minha cabeça preferi que a nova situação fosse ganhando espaço, embora não achasse que os peixes tenham menos direito à vida do que as vacas, porcos ou galinhas. Certa ou errada, foi apenas a forma que encontrei para tomar esta decisão.
Pratico yoga há seis anos e nunca o discurso do vegetarianismo me foi imposto por nenhum professor ou colega de prática. Era um assunto que frequentemente vinha “à baila”, mas sempre ouvi as opiniões pró e contra com a mesma intenção desinteressada e “apolítica”. Inversamente, e passando do plano da opinião para o do ensinamento, fui percebendo que na tradição védica, tradição que enquadra a minha prática e visão do yoga, a questão é clara e centra-se no princípio básico de AHIMSA (não violência), o primeiro Yama de Patãnjali. A regra é básica “não faças aos outros aquilo que não gostarias que te fizessem a ti.”
Será que nós seres humanos gostaríamos de servir de alimento a outra espécie? Será que nós, seres humanos, somos de alguma forma superiores às outras espécies para nos impormos como predadores com armas tão desiguais? Será que nós, seres humanos, dotados de livre-arbítrio e capacidade de discernimento, devemos alimentar-nos do sofrimento de outros seres quando somos os primeiros a ter alternativa?
Todas estas questões e muitas mais me foram invadindo o pensamento. Foram palpitando na minha mente e sobretudo no meu coração. Nada me estava a ser imposto, repito, e fisicamente sentia-me bem, não posso dizer o contrário. Apenas o meu coração começou a comunicar com o cérebro, transmitindo-lhe esta inquietude própria de quem percebe que está a magoar. Percebi que seria uma incoerência com aquilo que andava a estudar com tanta dedicação, e que rapidamente se tornou o meu código de conduta, pelo que decidi: “não vou continuar a alimentar-me de animais”. Por mais que digam que pouca diferença faz porque milhões de pessoas continuarão a alimentar-se deles, eu repito aquilo que sempre disse: “se ao longo da minha vida com esta decisão tiver contribuído para salvar 1 vaca, 2 porcos e 10 galinhas já terá valido a pena!”[1]
As acusações de fundamentalista do yoga a que fui sendo sujeita, na maior parte das vezes em tom de brincadeira é certo, sempre mexeram um pouco comigo. Para mim, fundamentalistas são aqueles que se recusam a ver para além dos paradigmas que a sociedade lhes impõe, mas lá me fui defendendo dos golpes de amigos e familiares, à direita e à esquerda, da forma mais diplomática que consegui.
Agora, e quando a questão se põe no seio da própria comunidade yogíca? É certo que não somos todos iguais. Nós yogis e yoginis não somos uma massa uniformizada de indivíduos com rastas (que não tenho), com aptidão para as massagens (que não tenho) ou medicinas alternativas (que não tenho) e com OM’s tatuados (que também não tenho). No entanto, se nos afirmamos como praticantes sérios, se nos apresentamos como professores de yoga temos de ser coerentes com aquilo que é o yoga. O yoga descondiciona-nos para nos permitir ver e sentir aquilo que somos, a nossa verdadeira natureza. O yoga não procura mudar aquilo que somos, apenas livrar-nos da ideias erradas que temos acerca daquilo que somos, como tal há que atravessar um processo, uma espécie de limpeza, em que as concepções erróneas vão sendo afastadas e o caminho vai ficando livre para ser trilhado. Em algumas pessoas a imagem correspondente seria a de uma retro escavadora a invadir um terreno baldio derrubando tudo o que lhe aparece à frente – estes são os radicais que se rendem ao yoga numa semana, mas que depois se esquecem que é preciso manter o terreno para que as ervas daninhas não voltem à carga. Noutros o processo é mais comparado a uma limpeza gradual e sustentada, com utensílios mais subtis permitindo conservar aquilo que é benéfico e descartar aquilo que já não nos serve.
O vegetarianismo é um dos estágios deste processo de limpeza. Ao pararmos de nos alimentar do sofrimento de outros seres (que não importa agora estar a descrever mas que é por todos mais do que conhecido, sobretudo no que respeita a criação intensiva de animais e a forma como estes são mortos), estamos a limpar o nosso próprio coração da violência que isso envolve. Pois bem, infelizmente há muitos elementos, dos mais acérrimos até, da comunidade yogíka que não entenderam o básico.
Em vários momentos me tenho apercebido que muitos praticantes de algumas tradições das mais exclusivistas, eu diria até snobs, do universo do yoga, nunca ouviram falar de vegetarianismo. Estes, que se apresentam como os verdadeiros representantes do yoga, criticando e subestimando os praticantes de outras tradições, são os primeiros na fila do churrasco. São os mesmos que defendem a lealdade aos seus mestres mas que são infiéis a si próprios pois não vivem em harmonia com aquilo que ensinam, simplesmente porque não o praticam. De que serve seguir cegamente um mestre se a cegueira nos tolda o discernimento até na hora de escolher o que colocamos no prato? De que serve viajar até à Índia para aprender directamente da fonte se esquecemos de beber a água? Viagem até à Índia sim mas não queiram apenas aprender a forma mais bonita de fazer o vinyasa, ou a técnica mais elaborada para utilizar o bolster, o cinto ou as cordas e chegar à postura perfeita, aprendam primeiro a cultura, o enquadramento em que o yoga nasceu e depois, se realmente quiserem fazer parte dela, esqueçam o ásana e concentrem-se na ética. Só através dela conquistarão o espaço necessário para se instalarem em harmonia com o ser pleno que somos, que é a plenitude do próprio universo e em última instância a LIBERDADE.
[1] Cada pessoa consome em média 4.022 animais ao longo de toda a sua vida. |