Sempre que falamos em asanas pensamos em corpo. E quando falamos
em corpo, pensamos em
partes. Asanas, às vezes soam tão fragmentados que mal
percebemos que esta forma de ver o próprio corpo, como “partes” dominadas por
uma cabeça, é tipicamente ocidental. E é então que a prática perde, a meu ver,
grande parte da essência, que é de ter nos asanas uma grande ferramenta para
unificar e aprofundar a percepção de si em todas as dimensões.
Posturas, asanas de todos os tipos, são como
portas para si. Este si que não é o Ser, mas que serve como veículo e é nosso
ponto de partida nessa busca pela verdade.
Qual seria a melhor forma de organizar a bagunça mental, com tantas
memórias, traumas e hábitos de toda uma vida se não, começando justamente por
onde tudo isso fica marcado? Pensar apenas na cabeça, no corpo como um
conglomerado de membros isolados é o mesmo que limitar a respiração apenas aos
pulmões. O corpo respira inteiro, pulsa inteiro, sente inteiro e pensa inteiro.
Antes de asanas, antes da meditação, antes de
qualquer busca espiritual vem o ajuste de si, yamas e niyamas, que tratam de
como interagimos com as outras pessoas e com o ambiente e como lidamos com os
nossos problemas, simplificando nossa complexidade mental e facilitando seu
entendimento. Os Yamas são: Ahimsa, não-ferir, não-violência; Satya,
veracidade, honestidade; Asteya, se abster de roubar ou tomar posse de bens
comuns; Brahmacharya, estabelecimento de relacionamentos harmoniosos e
Aparigraha, que é o controle da “sede” mental ou por objetos, significa não
apegar-se.
Os Niyamas são:
Saucha, limpeza interna e externa, transparência; Santosha, contentamento,
aceitação; Tapas, esforço, ardência para superar dificuldades; Svadhyaya, o
estudo de si, que pode e deve ser feito pelo estudo de textos antigos;
Isvarapranidhana, estado de entrega, abertura para aprender, gratidão profunda.
Não faria parte de yamas e niyamas um
retorno ao conhecimento de si, antes de tantas marcas? A afirmação “Eu sou
assim.”, não poderia ser substituída por, “Como foi que fiquei assim?”. Seria
interessante pesquisar em si as próprias formas antes de se impor ou rejeitar
novas. Com yamas e niyamas passamos por árduo esforço para reconhecer e transformar hábitos enraizados e
sustentados por uma cultura sem valores. Sair da zona de conforto dói e é
extremamente necessário assim como cautela e observação. Como passar pelo
processo de “purificação”, harmonização de um corpo sem os estranhamentos e
dificuldades que temos em ajustar nossas mentes? A mente é o próprio corpo.
Asanas podem proporcionar harmonia corporal,
corrigindo desvios e fazendo entender as forças que atuam incessantemente
dentro e fora de nós e que nos integram no mundo. Uma consciência, que assim
como valores básicos, temos que conquistar. E encontrar a estrutura pessoal que
está além do corpo construído é como ver-se além de tudo que nos foi registrado
desde que nascemos. Podemos trazer questões profundas que ficam adormecidas
principalmente em nossas articulações, que são nossos pontos de movimento, de
ação, e assim, ficamos mais preparados para ir mais longe, cada vez mais.
O estudo de uma anatomia viva exige um corpo
vivo. Um corpo que se relaciona, que tem “diálogos” entre suas “partes”. Os
pulmões quando se expandem tocam o coração. Quatro diafragmas; o topo da
cabeça, a base do cérebro, a garganta e o chão pélvico respondem delicadamente
abraçando a expansão. O corpo todo, incessantemente, como uma sanfona, se
expande e se contrai. E as pulsações cerebrais, sanguínea, respiratória e hormonal
se unem em uma única e harmônica música. É a vida, a criação que pode ser
sentida. E a partir dessa integração interna, antes de partir o corpo e brincar
de quebra-cabeça, podemos olhar para os nossos pés e ver através deles; ”como
foi que cheguei até aqui?”. E de repente ver as marcas no chão de todos os
nossos dias, onde talvez tenhamos andado torto, em direções diversas, rápido
demais e até mesmo tropeçado em alguns e naturais obstáculos. Podemos ir mais
longe; “Porque faço tanta força?”. “Porque me encolho tanto?”. “Porque sinto
meu quadril tão preso? Tenho medo de andar, de dar o próximo passo?”. “O que me
preenche dentro dessa camada de pele?”, e assim vai...
A partir de então a técnica vai servir para
amparar e reestruturar o corpo assim como os yamas e niyamas ajudam a
reestruturar nossos valores. Alinhamento sim, é essencial. E não é uma questão
de forma, mas sim de direção e inteligência na musculatura e nos ossos, que não
são passivos, mas completamente vivos. A inteligência no corpo se manifesta
pelo perfeito ajuste da musculatura ao menor esforço, para manter um ser humano
em pé sem muito gasto de energia. Os desvios começam quando perdemos nosso eixo
e o corpo se desorganiza para se sustentar, com muito mais dificuldade, em pé. Como poderia ficar em
estado relaxado se meu cérebro repousa constantemente fora do eixo, pendendo
para frente? Trazer a cabeça para o lugar também significa ter menos pressa. É
como um recuo para um ponto central onde é possível observar a vida calmamente
e reagir menos.
Então, a forma, o alinhamento e as posturas
são ferramentas, como uma bússola, para encontramos dentro de nós um eixo.
Descortinar nossas marcas significa olhar para o corpo e encarar os desvios e
tudo o mais que trazemos dentro de nós e que nos compõe. Mas que não é o Ser.
Asana pode fazer atravessar camadas profundas e pode acordar partes dormentes
do cérebro, preparando para um todo mental mais capaz.
Seria realmente bom “entortar-se” um
pouquinho aqui e ali para “cumprir” determinada postura? O jeitinho para
acomodar o desconforto não me parece adequado. Muito menos ignorar o
desconforto, mas seguir com um estudo mais cuidadoso do funcionamento do corpo.
A pesquisa é fundamental em todos os sentidos. Saber o que é bom para si com
suportes de princípios de alinhamento e com bastante atenção às nuances de
dores que aparecem pelo caminho. Algumas dores são sinais de alerta e outras
fazem parte do processo de transformação. A gentileza ajuda a identificar as
duas.
A prática de asanas deve ter um preparo,
assim como temos em yamas e niyamas. Reconhecer o próprio corpo em sua anatomia
humana e depois individual. E só então, com sensibilidade, buscar alternativas
que respeitem a direção para o equilíbrio das musculaturas e conseqüente
harmonização do corpo. Assim, a transformação acontece segura e construímos um
solo fértil para as práticas mais sutis, que vão fazer germinar as sementes da
plenitude de quem realmente somos.
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