
Para um estudo profundo e
uma compreensão clara do Yoga de Patañjali é essencial conhecer pelo menos
alguns elementos teóricos e explicações filosóficas do sistema Sámkhya1.
Os conteúdos destas duas escolas são de tal forma semelhantes, que a maior
parte das afirmações para um são também válidas para o outro. Contudo, existem
duas diferenças essenciais: enquanto o Sámkhya é ateu, o Yoga é teísta, já que
postula a existência de um ser divino, um ‘purusha especial’2, chamado
Íshvara3; enquanto que
para o Sámkhya a única forma de salvação é através do conhecimento metafísico,
o Yoga concede às técnicas de meditação uma importância considerável.
Purusha
e prakriti
No Sámkhya, a realidade é
percebida como a combinação entre duas entidades ou pólos distintos: o ser puro
(purusha) e a substância primordial
do universo (prakriti). Como
resultado dessa interacção, surge a evolução (parináma) de todo o universo material. No Sámkhya Káríká4, Íshvara Krishna ensina-nos que “o ser puro
é aquele que vê (sákshi), está
isolado (kaivalyam), é indiferente,
simples espectador inactivo.” Por outras palavras, purusha é a consciência testemunha, eterna e silenciosa de tudo o
que foi, é e será. A prakriti, a
natureza, também é real e eterna como o purusha,
mas ao contrário do espírito, é dinâmica e criativa.
Quando seus componentes
primários (gunas) se
manifestam simultaneamente mas em proporções desiguais, a prakriti sai do seu estado inicial de equilíbrio perfeito (alinga, avyakta) e assume especificações
condicionadas. Por essa razão podemos dizer que o processo de evolução é
conduzido pelos gunas.
Os
gunas
Os gunas5 são três: sattva
(harmonia, equilíbrio), rajas (acção,
movimento) e tamas (inércia,
inactividade). Vijñanabikshu6, um dos maiores comentadores do Yoga Sútra, faz-nos uma analogia entre
os gunas e as fibras de uma corda:
“assim como as fibras são inerentes na produção de uma corda, também os gunas são o fundamento e impregnam a prakriti.”
Chitta
Os primeiros e mais subtis
elementos ou fenómenos que surgem da prakriti
são, por esta ordem: a inteligência (buddhi),
o ego (ahamkára) e a mente inferior (manas). Este conjunto constitui o âmago
do indivíduo, as três faculdades cognitivas combinadas, referido por Patañjali
como consciência distintiva, a mente finita, em sâncrito chitta. Buddhi como a
parte mais subtil e transparente da consciência, produz a intuição, o
julgamento, o discernimento, o conhecimento, a vontade e o desapego. É também o
elemento que faz a ligação entre o purusha
e o mundo exterior. Esta função de buddhi
será objecto de detalhe mais à frente. Ahamkára
produz o sentido de individualização, o que faz o ‘eu’ e o que introduz a
distinção entre sujeito e objecto. Manas
permite-nos pensar, sentir, desejar e governar os sentidos.
Os
gunas e a produção de vrittis
Os gunas são interínsecos à prakriti
e impulsionam a evolução de chitta e
de toda a realidade manifesta a partir da prakriti.
Como já foi referido, é a inteligência (buddhi),
na sua forma de pura ‘luminosidade’ (sattva)
que tem a qualidade específica de reflectir o espírito cósmico. A compreensão
do mundo exterior só é possível graças a essa reflexão do purusha na inteligência. Mas antes é necessário eliminar a
influência de rajas e tamas na produção das modificações (vrittis) na consciência (chitta) e maximizar a presença de sattva, o mais puro dos gunas. Deste
modo, a consciência desenvolve o conhecimento discriminativo (viveka khyáteh)7 e o
indivíduo consegue ter uma imagem verdadeira de si próprio.
Percebendo
melhor a relação entre purusha e buddhi
Acerca da relação existente entre o ser e a
inteligência, Patañjali (YS. I. 41) ensina-nos que “quando os vrittis são
enfraquecidos, a consciência (chitta)
aparenta tomar a forma do objecto da meditação - seja ele o conhecedor (grahita), o processo de cognição (grahana) ou o objecto conhecido (gráhya) - como uma jóia transparente. A
esta identificação é chamada samápatti
ou absorção.”
Por outras palavras, assim como uma flor é
reflectida num cristal, buddhi
reflecte o purusha. Como nos
esclarece Mircéa Eliade, “só um ignorante pode atribuir ao cristal as
qualidades da flor (forma, dimensões e cores) nele reflectidas, porque quando
ela se move, a sua imagem move-se no cristal, embora este permaneça imóvel e
inalterado. É uma ilusão acreditar que o espírito é dinâmico porque a
experiência mental o é. Na realidade, trata-se apenas de uma relação ilusória (upádhi) que se deve a uma
‘correspondência simpática entre purusha
e buddhi’.”8
Bibliografia
- Georg Feuerstein, A
Tradição do Yoga, Pensamento.
- Mircéa Eliade, Patañjali
e o Yoga, Relógio D’Água.
- Námarúpa, Categories of
Indian Thought, Spring 2003.
- Pedro Kupfer, Yoga
prático, Dharma.
- Ráma Prasáda, Patañjali’s
Yoga Sútras, Munshiram Manoharlal Publishers Pvt. Ltd.
Notas
1 - Literalmente significa
‘enumeração’, de samkhyá, ‘número’.
Tal como o Yoga, é uma das seis escolas
clássicas de
pensamento do hinduísmo, que trata da classificação dos vários princípios (tattva) ou categorias da existência.
2 – ver YS. I. 24
3 – Nas interpretações
tardias do Sámkhya e do Yoga Sútra, este modelo arquétipo do praticante de
Yoga, adquire o estatuto de deus supremo. Na metafísica tântrica, Íshvara
aparece identificado com o bindu, o ponto a partir do qual se expande o
Universo.
4 - Texto fundamental do
Sámkhya Clássico. Íshvara Krishna é o seu autor.
5 - Para além do sistema
Sámkhya, podemos também encontrar inúmeras referências sobre os gunas e suas
características, por exemplo, no Bhagavad Gítá, nomeadamente nos capítulos XIV,
XVII e XVIII.
6 - Vijñána Bhikshu é um
dos comentadores do Yoga Sútra de
Patañjali, do século XVI d.C., autor do Yoga
Várttika (‘Tratado de Yoga’) e do
Yogá Sára Samgraha (‘Compêndio da Essência do Yoga’), que é uma síntese do
seu volumoso tratado.
7 - “Com o desaparecimento
[destruição] das impurezas através da prática dos membros do Yoga, [brilha] o
fulgor da sabedoria (jñána), [que
aumenta até chegar] à visão do discernimento.” YS. II. 28
8 - Patañjali e o Yoga, pg
42. |