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Ensinamento

Yoga e Liberdade (2)
Tales Nunes
09-12-2008


“Liberdade não é fazer o que quer, é simplesmente contentar-se com o que é.”

(Tales Nunes) 

     Qual, afinal, é o objetivo do Yoga? Para que fazermos tantas ações e criarmos uma disciplina de prática de Yoga? Parto do princípio de que o objetivo de praticarmos Yoga é alcançarmos a liberdade. Mas se buscamos alcançar a liberdade é porque não somos livres. Então, o que nos aprisiona?

     O mundo, a realidade é como é, nós imprimimos sobre ele valores, desejos e expectativas. Ao ponto de podemos dizer que existe um mundo em cada mente humana. Há uma maneira de ver e de interpretar o mundo em cada pessoa.

     A nossa mente deve ser uma ferramenta de aprendizado e amadurecimento que nós possuímos, mas, na verdade, a nossa mente nos possui. Ela nos leva para passear junto com ela em seus altos e baixos. Mas poderia ser diferente?

     Bom, vamos pensar que nós podemos ter três tipos de postura em relação a nossa mente: uma postura reativa, reflexiva e contemplativa.

     Como, porém, nós podemos ser algo em relação a nossa mente, se nós somos a mente? Primeiro devemos entender que nós não somos a mente, a mente é parte de nós. Quando realizamos isso começa o caminho para a liberdade.  


Uma mente reativa 

     Os valores que cada um de nós possuímos são construídos a partir do tempo, do local e da circunstância que estamos inseridos, assim diz a psicologia, a sociologia e a antropologia. Cada uma dessas disciplinas dá ênfase a um determinado aspecto da formação da identidade do ser humano, seja social ou individual.

     O Yoga, por sua vez, inclui outro fator não comumente falado pelas ciências do homem: os efeitos produzidos por vidas passadas, que tem influência sobre o que vivemos hoje. A idéia é que nós nascemos nesse local, nessa família, nesse período, justamente por influência de ações anteriores ao nascimento1. O objetivo deste artigo não é discutir o que acontece antes do nosso nascimento, ou após a nossa morte, mas o que acontece no meio.

     Nascemos numa família, com pais irmão que vão se relacionar conosco de determinada maneira, que vão nos influenciar de um jeito e nós vamos construir a nossa identidade a partir desse relacionamento e de outros que vão além da nossa família e inclui as relações com nossos vizinhos, com outras pessoas que vivem na cidade e no país que residimos.

     Depois que começamos a falar, seja qual for a língua, nasce dentro de nós uma vozinha que irá nos acompanhar pelo resto da vida. Uma vozinha que olha para o mundo exterior e se identifica, qualifica, julga o mundo bom ou ruim de acordo com os nossos gostos e aversões que se desenvolverão e se arraigarão dentro de nós ao longo do tempo.

     Nós somos estimulados a construir a nossa identidade a partir da ilusória idéia de autonomia, pois a sociedade em que vivemos idolatra este valor. É inculcado em nós o desejo intenso de sermos diferentes dos outros, a querermos uma roupa que seja diferente, um carro, um celular que seja a minha cara. A idéia de sermos diferentes dos outros está tão fortemente arraigada em nós que quando encontramos alguém vestido igual a nós, sentimo-nos constrangidos. Por que? Porque necessitamos ser diferentes. Necessitamos possuir uma história de vida que seja única e contar essa história de vida com todo o orgulho e apego.

      Assim, então, criamos as nossas identificações com certas coisas e as nossas desidentificações com outras, formamos a nossa personalidade, os nossos apegos e aversões. E quanto mais o tempo passa, parece que mais nos apegamos a essa construção. Quanto mais realidade damos a nossa idéia de identidade, mais grudados nos tornamos aos condicionamentos, padrões mentais, emocionais. E a vozinha interna, a própria voz do ego que torna todas as experiência auto-referentes, ganha mais força de realidade. Ao ponto de acharmos que somos apenas a nossa personalidade.

Apegados a essa vozinha interna, reagimos constantemente perante os outros, perante a vida, ao invés de agirmos de acordo com as circunstâncias. Queremos que o mundo e as pessoas sejam como nós desejamos. Sentimo-nos presos pelo mundo porque a nossa felicidade depende dele e tentamos controlá-lo à nossa maneira. Ou seja, sentimo-nos presos pelo mundo e pelas pessoas e ao mesmo tempo tentamos aprisioná-los. 
 

Uma mente reflexiva 

     Uma mente reflexiva é uma mente capaz de olhar para si mesmo, para esse constante movimento, com o mesmo olhar imparcial que olhamos para os fenômenos externos a nós, vemos que é ilógico termos como referência de nós mesmos essa mente oscilante.

     A nossa mente trabalha fazendo conexões, encadeamentos, tendo como matéria um conteúdo que acumulamos ao longo do tempo: memórias do que vimos, ouvimos e vivemos, isto é, a nossa própria história de vida. A nossa história de vida pode ser resumida na nossa reação de aproximação do que nós desejamos, o que achamos que nos faz bem, e da reação de afastamento do que nós não gostamos, do que achamos que não nos faz bem.

     Mas se pararmos e olharmos para o nosso eu relacional, a nossa personalidade, vemos que é completamente mutável. O que gostamos hoje, desgostamos amanhã, o que nos faz feliz hoje, amanhã se torna um problema. Estou alegre, estou triste. Estou calmo, estou com raiva. Estou bem, estou mal. A mente sempre vai variar entre esses estados, “bons” e “ruins”. E se estamos identificados com o conteúdo da nossa mente, quando a mente está bem, eu estou bem e o mundo todo parecerá estar perfeitamente bem. Porém quando a mente estiver mal, eu estarei mal e o mundo inteiro parecerá estar errado.

     As qualidades das coisas não estão nas coisas, estão em nós mesmos. Nós imprimimos sobre o mundo os nossos valores. As coisas e as pessoas em si não têm qualidade de nos aprisionar, de nos tornar felizes, tristes ou raivosos. Vendo isso, nos abstemos de culpar os outros pela nossa infelicidade, pela nossa falta de liberdade, ou o que quer que seja. Ninguém e nada tem esse poder, nós mesmos investimos as pessoas e as coisas desse poder. Esse reconhecimento é a grande qualidade de uma mente reflexiva, pois traz para si mesmo a responsabilidade pela própria felicidade, sem julgamentos, pois não é justo conosco nos julgarmos com base num estado momentâneo da mente. Este estado, amanhã, pode ser completamente diferente e nós não temos controle nem poder sobre como nós podemos ser ou como estaremos amanhã ou daqui a duas horas.

     A compreensão de que é ilógico julgarmos os outros e nós mesmos confere-nos liberdade, aceitação e relaxamento para sermos o que devemos ser no momento e as outras pessoas a serem do jeito que são.  
 

Uma mente contemplativa, uma mente livre 

     Se somos capazes de olhar para o que pensamos ser o nosso verdadeiro eu como objeto, é porque existe algo mais que é sujeito. Ou seja, é porque existe algo mais dentro de nós que não é apenas uma personalidade formada de gostos e de aversões e que constantemente reage diante das situações impostas pelo mundo. Uma mente contemplativa é capaz de perceber uma presença silenciosa além de seus próprios ruídos, além da vozinha interna constantemente a conversar. É uma mente que tem a capacidade de permanecer tranqüila diante da agitação, serena diante da tristeza, pois reconhece em si toda a paz e plenitude que antes buscava fora, nos objetos externos.

     Ao criar esse distanciamento em relação aos seus próprios movimentos mentais, reconhece e desidentificação com a própria história de vida e todos os dramas que a mente cria para nos aprisionar. Quando vistos de cima, todos os dramas ficam pequenos. Uma mente contemplativa é uma mente livre, livre de si mesmo, pois apenas nós mesmos temos a capacidade de nos aprisionar. Ao se ver livre das identificações com o conteúdo mental, com os dramas pessoais, há a possibilidade de rir de si mesmo, de não se levar tão a sério. Quando estamos dentro de um cinema, assistindo a um filme, nos emocionamos, nos identificamos com os personagens, até mesmo choramos. Mas a todo o momento não perdemos a consciência de que aquilo não é real, é uma ficção, uma encenação. Assim também é a vida, mas quando apegados a ela não conseguimos reconhecer.

     Uma mente contemplativa, livre, reconhece e, assim, aprecia. Aprecia tanto a vida, todos os aspectos da criação, a natureza, os animais em sua imensa e bela variedade e formas, como aprecia a si mesmo, os seus próprios estados mentais, sejam eles considerados bons ou ruins, como parte do mesmo Todo. Como manifestações da Consciência que aprecia brincar com as formas e com o movimento. A vida é feita de luz e movimento constante. O que nasce hoje já tem a sua morte anunciada e dela o surgimento de algo novo. Cabe a nós apenas apreciarmos esse belo espetáculo que é a vida. Mas para isso, é necessário, discriminação, desapego, aceitação. Discriminação para saber que todos os objetos que os nossos sentidos possam apreender são perecíveis, porém a nossa essência é eterna. Desapego para que possamos contemplar as mudanças, internas e externas. E aceitação para acolher a si mesmo e ao mundo como eles se apresentam.

     “Liberdade não é fazer o que quer, é simplesmente contentar-se com o que é” 


Tales Nunes é yogi, professor, praticante e editor dos Cadernos de Yoga.

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