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Ensinamento

O sentido da devoção
Rodrigo G. Ferreira
22-06-2009


É comum, do ponto de vista da razão, não encontrar um sentido na ação devocional. O comportamento do devoto parece nascer numa falta de compreensão ou incapacidade de se perceber a causa do universo pela razão. No entanto, dentro do Vedanta, há uma maneira para lidarmos com os sentimentos de limitação e acolher a devoção com um sentido bastante claro à nossa razão.

Sentir-se um indivíduo

Como uma pessoa, sinto-me uma pequena parte dentro da totalidade do universo. Mesmo que tenha muita autoconfiança, inevitavelmente, ao longo da vida, perceberei que o universo não se sujeita às minhas vontades. Por vezes noto que os resultados de minhas ações são como desejei, e posso sentir que deles fui o único criador. Outras vezes o resultado que desejo não acontece, talvez nem próximo ao meu desejo inicial, e mesmo com a certeza de ter feito tudo certo.

Noto que, apesar de eu sentir que posso escolher determinadas coisas, os resultados das minhas ações não são determinados apenas pelo meu esforço individual. Quando jogo uma bola ao alto, por mais que eu me esforçe, deseje e medite, a lei da gravidade estará presente e influenciará no resultado, forçando-o em direção ao centro da Terra. Não posso mudar a gravidade. Posso percebê-la pelo resultado que gera, aceitar e me adaptar. Posso então criar modos de compensar a força da gravidade, apropriando-me de outras leis, e fazer com que um objeto fique no ar como se não estivesse sujeito à gravidade — mas ele está, como sempre esteve.

Assim noto que há um funcionamento do universo, uma ordem, que está além do meu conhecimento em sua totalidade, mas que eu posso conhecer em parte. Também noto materiais que são dados — pois não criei, e tampouco nenhum outro humano –, como os elementos naturais que compõe todo o universo e meu corpo físico.

Uma causa inteligente

Apesar de eu sentir uma livre-escolha, posso razoavelmente aceitar que há uma ordem que transcende as minhas individuais e até de todas pessoas. Podemos estudá-la e nos adaptarmos à elas, construindo variações dentro das possibilidades.

O reconhecimento desta ordem impessoal não é uma questão de crença, pois é evidente. Não preciso acreditar e esperar alguma prova futura. A minha própria manifestação como um ser humano neste instante é fruto de uma causa inteligente que não é individual, nem minha, nem de qualquer outro indivíduo. Toda criação pressupõe uma causa inteligente, porém, neste caso do universo, evidentemente não é uma causa inteligente humana ou individual. A criação humana, incluindo a inteligência humana, é também fruto de uma causa que a transcende.

Uma causa material

Quase todas coisas que conheço tem uma causa inteligente — como alguém que fez — e uma causa material — a materia prima que alguém utilizou. Quando vejo um pote de barro, sei que esta criação teve como causa material o barro, que é a causa material para todos objetos feitos de barro. O material do pote tem sua causa em um material básico, que é independente do pote, apesar do pote de barro ser dependente do barro.

A causa material geralmente está disassociada da sua causa inteligente. O artesão que criou o pote de barro não está em todo lugar em que o pote está. A conhecimento e a capacidade para criar o pote não está no pote, na criação, mas ali está apenas uma das suas expressões.

As causas do universo

Quando olho para o universo e reflito sobre sua causa, tendo a pensar como no caso do pote. Tenho contato com uma criação, que é o universo inteiro, que tem leis que o mantém — e leis que o transformam — e consigo tocar um material que também deve ter uma causa. Assim, posso acabar imaginando que o universo também tem uma causa inteligente separada da causa material.

Se o universo tivesse uma causa inteligente, que podemos chamar aqui, sem conotações atropomórficas, como o Criador, que não está presente na Criação, teríamos que questionar de onde vem a causa material, quem a criou e com que material. Nestes questionamentos, teríamos que descer o status do Criador (causa inteligente) de omnisciente, omnipotente, omnipresente, pois ele não teria como estar no local da causa material, não teria como estar na própria criação, ou não teria como saber tudo. Poderia-se chegar a imaginar um segundo Criador para a causa material, mas do qual o primeiro Criador seria dependente. Em fim, a disassociação da causa inteligente e material do universo gera digressões infinitas, sem permitir uma acomodação em nossa capacidade de compreensão com base no que podemos perceber na Criação, sem permitir a percepção de uma totalidade única, que inclui toda e qualquer dualidade manifesta.

O universo tem uma causa inteligente e material única

Podemos perceber que a manifestação do universo que experenciamos tem uma causa única. Mesmo na Criação temos exemplos, como a teia da aranha que tem sua causa inteligente e material na aranaha somente. Assim como nosso sonho, cuja criação inteligente e material tem sua causa somente na pessoa que sonha.

A hipótese de que há um Criador separado da Criação é uma questão de crença, pois envolve uma verificação que não é possível. A hipótese do universo como tendo uma causa inteligente e material única não é uma questão de crença, pois podemos ter evidências que a confirmam.

A relação constante com o Criador

Quando percebo que a experiência e a interação com o universo é, ao mesmo tempo, com o Criador, que é não-separado da Criação, posso sentir a relação fundamental que tenho em todos meus papéis. Como um indivíduo social, tenho diferentes responsabilidades com diferentes pessoas, que me chamam à desempenhar papéis diferentes, em função do que é apropriado à cada caso. A maneira como tratamos uma criança não precisa, nem deve, ser igual a que tratamos um adulto. Assim também num ambiente de trabalho e na intimidade da família. Não há problema no fato de existirem múltiplos papéis, pois cada situação é diferente e pede uma resposta diferente.

Em comum à todos estes papéis, há uma constante relação com a Criação. Tudo e todos com os quais nos relacionamos são parte da Criação. Fundamental à todos meus papéis sociais, está um papel de relação com a Criação, que é a relação com o próprio Criador, não-separado dela.

O papel do devoto

Os atos relacionados à liturgia religiosa são associados a um papel específico, geralmente chamado de devoto. Contudo, deste modo, este papel tem um caráter fracionado como os outros, de pai, mãe, amigo, aluna etc. Ou seja, quando estou como um profissional, não sou um devoto. Assim, eu seria um devoto quando estou em um templo, igreja, em oração etc. Porém, fundamentalmente, este papel de devoto fracionado é também um de relação com a Criação, que é o Criador, apesar de não necessariamente com esta compreensão.

A direção que quero trazer aqui é a do papel do devoto como o papel fundamental que não é diferente daquele que desempenhamos quando estamos em outros papéis. Ser devoto, neste sentido que traz o Vedanta, é descobrir a relação fundamental e constante que temos com o universo em sua totalidade, que pode assumir expressões específicas, como a da pessoa que ora numa igreja ou a que digita no computador para o trabalho. Este papel de devoto, fundamental, não some quando assumimos nossa postura profissional, diferente da religiosa.

Quando se descobre este relacionamento fundamental, descobrimos o devoto em nós, aquele que percebe a relação com a causa inteligente e material de todo o universo, de fato omnipresente. Não há lugar onde o Criador não esteja, não há forma que não o evoque, não há tempo em que não esteja presente. Portanto nosso papel fundamental é o do devoto.

Orar não é estudar

Quando oro, deixo expressar minhas dúvidas, ou seja, minha parte que não consegue compreender a totalidade. Uma oração não é um estudo e posso canalizar, na forma de um pedido como se a totalidade divesse uma direção, uma individualidade com a qual eu posso me relacionar. Por exemplo:

Ó senhor, não sei qual é a sua forma real, porém, seja qual for, eu o saúdo.

A oração não é uma anulação do conhecimento que tenho da totalidade impessoal, ou uma busca por ele, mas uma expressão possível desde a minha parte que não sente a presença da totalidade. Como o lidar com uma criança que ainda não compreende certas questões dos adultos. Um adulto pode e deve direcionar a expressão da criança da maneira que lhe é possível à capacidade de compreensão da criança. Achar que a criança tem um problema por não ter capacidade de abstração de um adulto é a negação de um fato, um ignorância e a base para reações fundamentadas num erro. A devoção não é causada por um sentimento infantil ou uma presença necessariamente imatura que carregamos, mas trago esta anlogia em função da capacidade que temos de perceber duas formas diferentes de compreensão ao mesmo tempo, e lidar com este fato.

Se existe uma sensação de impotência, apesar de eu estar ciente que já fiz tudo o que podia frente à situação conflituosa, quando oro, e assim reconheço um fator determinante para o resultado que não está no meu indivíduo, crio um ação inteligente.

O sentido da devoção

A inteligência está na capacidade de perceber o fato de eu não poder controlar tudo desde a referência das minhas vontades, conhecimentos e capacidades, pois isto é evidente à cada instante que observo o universo. Quando oro, permito que minha angústia seja colocada à luz de um conhecimento que tenho sobre o não-cabimento desta angústia e, ao mesmo tempo, o reconhecimento, acolhimento e direcionamento desta agústia.

O visão da totalidade, do Criador como não-separado da Criação, e nossa condição, ao mesmo tempo, individual, permite uma expressão devocional em função da tensão de referências. Existe uma sensação de falta de poder, conhecimento e preenchimento que é experenciada individualmente e que tem um tipo de realidade. Mesmo não sendo uma realidade absoluta, pois é fruto de uma visão à partir dos limites relativos ao indivíduo, é um sentimento presente que teremos de lidar. Em outras palavras, o sentido da devoção está no reconhecimento e expressão de uma tensão entre a condição individual limitada e, ao mesmo tempo, de uma condição total ilimitada que também percebemos. A devoção permite que reconheçamos um fato humano: identificamos uma realidade total e outra limitada, e podemos expressão este reconhecimento.


 

Rodrigo G. Ferreira mora em Florianópolis, SC, Brasil, estuda Vedanta com Gloria Arieira e também conduz estudos dentro desta tradição. www.vedanta.pro.br




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