É comum, do ponto de vista da razão, não encontrar um sentido na
ação devocional. O comportamento do devoto parece nascer numa falta de
compreensão ou incapacidade de se perceber a causa do universo pela
razão. No entanto, dentro do Vedanta, há uma maneira para lidarmos com
os sentimentos de limitação e acolher a devoção com um sentido bastante
claro à nossa razão.
Sentir-se um indivíduo
Como uma pessoa, sinto-me uma pequena parte dentro da totalidade do
universo. Mesmo que tenha muita autoconfiança, inevitavelmente, ao
longo da vida, perceberei que o universo não se sujeita às minhas
vontades. Por vezes noto que os resultados de minhas ações são como
desejei, e posso sentir que deles fui o único criador. Outras vezes o
resultado que desejo não acontece, talvez nem próximo ao meu desejo
inicial, e mesmo com a certeza de ter feito tudo certo.
Noto que, apesar de eu sentir que posso escolher determinadas
coisas, os resultados das minhas ações não são determinados apenas pelo
meu esforço individual. Quando jogo uma bola ao alto, por mais que eu
me esforçe, deseje e medite, a lei da gravidade estará presente e
influenciará no resultado, forçando-o em direção ao centro da Terra.
Não posso mudar a gravidade. Posso percebê-la pelo resultado que gera,
aceitar e me adaptar. Posso então criar modos de compensar a força da
gravidade, apropriando-me de outras leis, e fazer com que um objeto
fique no ar como se não estivesse sujeito à gravidade — mas ele está,
como sempre esteve.
Assim noto que há um funcionamento do universo, uma ordem, que está
além do meu conhecimento em sua totalidade, mas que eu posso conhecer
em parte. Também noto materiais que são dados — pois não criei, e
tampouco nenhum outro humano –, como os elementos naturais que compõe
todo o universo e meu corpo físico.
Uma causa inteligente
Apesar de eu sentir uma livre-escolha, posso razoavelmente aceitar
que há uma ordem que transcende as minhas individuais e até de todas
pessoas. Podemos estudá-la e nos adaptarmos à elas, construindo
variações dentro das possibilidades.
O reconhecimento desta ordem impessoal não é uma questão de crença,
pois é evidente. Não preciso acreditar e esperar alguma prova futura. A
minha própria manifestação como um ser humano neste instante é fruto de
uma causa inteligente que não é individual, nem minha, nem de qualquer
outro indivíduo. Toda criação pressupõe uma causa inteligente, porém,
neste caso do universo, evidentemente não é uma causa inteligente
humana ou individual. A criação humana, incluindo a inteligência
humana, é também fruto de uma causa que a transcende.
Uma causa material
Quase todas coisas que conheço tem uma causa inteligente — como
alguém que fez — e uma causa material — a materia prima que alguém
utilizou. Quando vejo um pote de barro, sei que esta criação teve como
causa material o barro, que é a causa material para todos objetos
feitos de barro. O material do pote tem sua causa em um material
básico, que é independente do pote, apesar do pote de barro ser
dependente do barro.
A causa material geralmente está disassociada da sua causa
inteligente. O artesão que criou o pote de barro não está em todo lugar
em que o pote está. A conhecimento e a capacidade para criar o pote não
está no pote, na criação, mas ali está apenas uma das suas expressões.
As causas do universo
Quando olho para o universo e reflito sobre sua causa, tendo a
pensar como no caso do pote. Tenho contato com uma criação, que é o
universo inteiro, que tem leis que o mantém — e leis que o transformam
— e consigo tocar um material que também deve ter uma causa. Assim,
posso acabar imaginando que o universo também tem uma causa inteligente
separada da causa material.
Se o universo tivesse uma causa inteligente, que podemos chamar
aqui, sem conotações atropomórficas, como o Criador, que não está
presente na Criação, teríamos que questionar de onde vem a causa
material, quem a criou e com que material. Nestes questionamentos,
teríamos que descer o status do Criador (causa inteligente) de
omnisciente, omnipotente, omnipresente, pois ele não teria como estar
no local da causa material, não teria como estar na própria criação, ou
não teria como saber tudo. Poderia-se chegar a imaginar um segundo
Criador para a causa material, mas do qual o primeiro Criador seria
dependente. Em fim, a disassociação da causa inteligente e material do
universo gera digressões infinitas, sem permitir uma acomodação em
nossa capacidade de compreensão com base no que podemos perceber na
Criação, sem permitir a percepção de uma totalidade única, que inclui
toda e qualquer dualidade manifesta.
O universo tem uma causa inteligente e material única
Podemos perceber que a manifestação do universo que experenciamos
tem uma causa única. Mesmo na Criação temos exemplos, como a teia da
aranha que tem sua causa inteligente e material na aranaha somente.
Assim como nosso sonho, cuja criação inteligente e material tem sua
causa somente na pessoa que sonha.
A hipótese de que há um Criador separado da Criação é uma questão de
crença, pois envolve uma verificação que não é possível. A hipótese do
universo como tendo uma causa inteligente e material única não é uma
questão de crença, pois podemos ter evidências que a confirmam.
A relação constante com o Criador
Quando percebo que a experiência e a interação com o universo é, ao
mesmo tempo, com o Criador, que é não-separado da Criação, posso sentir
a relação fundamental que tenho em todos meus papéis. Como um indivíduo
social, tenho diferentes responsabilidades com diferentes pessoas, que
me chamam à desempenhar papéis diferentes, em função do que é
apropriado à cada caso. A maneira como tratamos uma criança não
precisa, nem deve, ser igual a que tratamos um adulto. Assim também num
ambiente de trabalho e na intimidade da família. Não há problema no
fato de existirem múltiplos papéis, pois cada situação é diferente e
pede uma resposta diferente.
Em comum à todos estes papéis, há uma constante relação com a
Criação. Tudo e todos com os quais nos relacionamos são parte da
Criação. Fundamental à todos meus papéis sociais, está um papel de
relação com a Criação, que é a relação com o próprio Criador,
não-separado dela.
O papel do devoto
Os atos relacionados à liturgia religiosa são associados a um papel
específico, geralmente chamado de devoto. Contudo, deste modo, este
papel tem um caráter fracionado como os outros, de pai, mãe, amigo,
aluna etc. Ou seja, quando estou como um profissional, não sou um
devoto. Assim, eu seria um devoto quando estou em um templo, igreja, em
oração etc. Porém, fundamentalmente, este papel de devoto fracionado é
também um de relação com a Criação, que é o Criador, apesar de não
necessariamente com esta compreensão.
A direção que quero trazer aqui é a do papel do devoto como o papel
fundamental que não é diferente daquele que desempenhamos quando
estamos em outros papéis. Ser devoto, neste sentido que traz o Vedanta,
é descobrir a relação fundamental e constante que temos com o universo
em sua totalidade, que pode assumir expressões específicas, como a da
pessoa que ora numa igreja ou a que digita no computador para o
trabalho. Este papel de devoto, fundamental, não some quando assumimos
nossa postura profissional, diferente da religiosa.
Quando se descobre este relacionamento fundamental, descobrimos o
devoto em nós, aquele que percebe a relação com a causa inteligente e
material de todo o universo, de fato omnipresente. Não há lugar onde o
Criador não esteja, não há forma que não o evoque, não há tempo em que
não esteja presente. Portanto nosso papel fundamental é o do devoto.
Orar não é estudar
Quando oro, deixo expressar minhas dúvidas, ou seja, minha parte que
não consegue compreender a totalidade. Uma oração não é um estudo e
posso canalizar, na forma de um pedido como se a totalidade divesse uma
direção, uma individualidade com a qual eu posso me relacionar. Por
exemplo:
Ó senhor, não sei qual é a sua forma real, porém, seja qual for, eu o saúdo.
A oração não é uma anulação do conhecimento que tenho da totalidade
impessoal, ou uma busca por ele, mas uma expressão possível desde a
minha parte que não sente a presença da totalidade. Como o lidar com
uma criança que ainda não compreende certas questões dos adultos. Um
adulto pode e deve direcionar a expressão da criança da maneira que lhe
é possível à capacidade de compreensão da criança. Achar que a criança
tem um problema por não ter capacidade de abstração de um adulto é a
negação de um fato, um ignorância e a base para reações fundamentadas
num erro. A devoção não é causada por um sentimento infantil ou uma
presença necessariamente imatura que carregamos, mas trago esta anlogia
em função da capacidade que temos de perceber duas formas diferentes de
compreensão ao mesmo tempo, e lidar com este fato.
Se existe uma sensação de impotência, apesar de eu estar ciente que
já fiz tudo o que podia frente à situação conflituosa, quando oro, e
assim reconheço um fator determinante para o resultado que não está no
meu indivíduo, crio um ação inteligente.
O sentido da devoção
A inteligência está na capacidade de perceber o fato de eu não poder
controlar tudo desde a referência das minhas vontades, conhecimentos e
capacidades, pois isto é evidente à cada instante que observo o
universo. Quando oro, permito que minha angústia seja colocada à luz de
um conhecimento que tenho sobre o não-cabimento desta angústia e, ao
mesmo tempo, o reconhecimento, acolhimento e direcionamento desta
agústia.
O visão da totalidade, do Criador como não-separado da Criação, e
nossa condição, ao mesmo tempo, individual, permite uma expressão
devocional em função da tensão de referências. Existe uma sensação de
falta de poder, conhecimento e preenchimento que é experenciada
individualmente e que tem um tipo de realidade. Mesmo não sendo uma
realidade absoluta, pois é fruto de uma visão à partir dos limites
relativos ao indivíduo, é um sentimento presente que teremos de lidar.
Em outras palavras, o sentido da devoção está no reconhecimento e
expressão de uma tensão entre a condição individual limitada e, ao
mesmo tempo, de uma condição total ilimitada que também percebemos. A
devoção permite que reconheçamos um fato humano: identificamos uma
realidade total e outra limitada, e podemos expressão este
reconhecimento.
Rodrigo G. Ferreira mora em Florianópolis, SC, Brasil, estuda Vedanta com Gloria Arieira e também conduz estudos dentro desta tradição. www.vedanta.pro.br |