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Ensinamento

ABHYĀSA E VAIRĀGYA, os pilares do Yoga
Simão Monteiro
08-10-2010


abhyäsavairägyäbhyäà tannirodhaù || 12 ||

Isso [a cessação da identificação com os vrttis, consegue-se] através da repetição e do desapego.

abhyäsa = repetição, disciplina, prática
vairägya = desapego
abhyäà = através de
tan = isso
nirodhaù = desidentificação

Depois de Patañjali nos enumerar os tipos de instabilidade da consciência nos sūtras anteriores, agora apresenta-nos duas soluções para eliminarmos a identificação com essas instabilidades. Abhyāsa, a prática constante e Vairāgya, o desapego, são então os dois pilares onde assenta o Yoga de Patañjali, ou seja, são os dois pilares para podermos ter um controle sobre os nossos pensamentos.

A proposta do Yoga não é de todo evitar os pensamentos ou tentar eliminá-los, mas sim perceber que aquilo que eu sou não é os pensamentos. Sabendo que a função da mente é pensar e que isso nos é útil no dia-a-dia, o que há a fazer é saber utilizar a mente para nosso benefício e não deixar que seja a mente a utilizar-nos. Da mesma forma que eu conduzo um carro (o veículo), também deveria ser eu a conduzir a mente (um outro veículo à minha disposição).

O método para disciplinar a mente e ter as rédeas sobre ela é a prática constante e o desapego. Aliás, este método é também ensinado por Kṛṣṇa a Arjuna na Bhagavad Gītā, capítulo 6: “Sem dúvida, ó Mahābāhu [Arjuna], a mente é agitada e difícil de ser controlada. Mas, Kaunteya [Arjuna], ela é disciplinada através da prática e do desapego. O Yoga é difícil de ser alcançado por aquele cuja mente não foi disciplinada. Esta é a minha visão. Mas pode ser alcançado por aquele cuja mente está sob o seu comando, por aquele que se esforça através dos meios adequados [abhyāsa e vairāgya].”

Se pensarmos numa bateria abhyāsa seria o pólo positivo e vairāgya o pólo negativo. Abhyāsa consiste em praticar de forma constante e responsável, em cultivar um estilo de vida de Yoga, em viver em Yoga. Em abhyāsa a ideia fundamental é não desistir. Vairāgya consiste em desapegar-se, desprender-se dos apegos, das aversões e das falsas identidades. Saber ver as coisas como elas são, com objectividade. Em vairāgya a ideia fundamental é saber soltar, deixar ir, deixar fluir.

A disciplina e determinação de abhyāsa leva-nos na direcção certa enquanto que vairāgya permite-nos continuar a viagem interna sem ficarmos agarrados aos prazeres e dores que vamos experienciando ao longo do caminho.

tatra sthitau yatno’bhyäsaù || 13 ||

Dos dois [anteriormente mencionados], abhy€sa é o esforço estabelecido [na desidentificação com os pensamentos].

tatra = dos dois
sthitau = estabelecido
yatna = esforço
abhyäsa = repetição

Abhyāsa, a prática responsável e constante (como definiu o comentador dos sūtras, Vyāsa), é saber ver como a mente, de novo e de novo, é apenas um instrumento para ser utilizado pelo Eu, ātmā. Sendo um instrumento é diferente daquele que o utiliza, Eu. Os pensamentos são eu, mas Eu sou muito mais do que simples pensamentos, Eu sou aquele que observa os próprios pensamentos.

Uma vez que temos uma percepção equivocada daquilo que somos (pensamos ser os nossos pensamentos), é necessário um constante esforço e disciplina para vermos a mente com uma certa distância e assim reconhecermos a natureza do Eu, que é livre de pensamentos. Isto é abhyāsa.

Dentro do contexto da meditação abhyāsa inclui a prática de japa, a repetição de um mesmo mantra. O japa permite ao praticante entender o processo de pensar, perceber as respostas condicionadas da mente, os apegos e aversões, as facilidades e dificuldades da própria mente para assim poder ter uma mestria sobre ela. Mas esta disciplina pode e deve ser aplicada a todas as situações do dia-a-dia bem como à própria prática de Yoga que fazemos diariamente, como veremos a seguir.

sa tu dérghakälanairantaryasatkäräsevito dåòhabhümiù || 14 ||

Porém, esse [abhy€sa] estabelece-se firmemente pela prática ininterrompida, por longo tempo e com real dedicação.

sa = esse
tu = porém, mas
dérgha
= longo
käla = tempo
nairantarya = sem diferença”, ininterrompidamente, incessantemente
satkära = reverência, dedicação real

äsevitaù = praticado

dåòha = firme

bhümi = terra, estabilização

Para que abhyāsa dê seus frutos e funcione é necessário que seja feito por um longo tempo, de forma ininterrompida e com profunda e real dedicação. As mudanças na nossa vida não acontecem de um dia para o outro. Se decidimos empreender o caminho do Yoga com o objectivo de conhecermos a nossa natureza real, a de que somos livres de limitação, vamos depararar-nos com diversas dificuldades colocadas pelos condicionamentos construídos por nós próprios ao longo desta e de outras vidas.

Sendo assim, é necessária uma grande disciplina por parte do praticante, uma grande preseverança e dedicação ao longo da vida para poder ir desmanchando as falsas noções que tem acerca de si mesmo. Patañjali diz-nos claramente neste sūtra para termos uma vida de Yoga, viver uma vida dedicada inteiramente ao Yoga. Abhyāsa é manter como prioridade número um a libertação, Moka.

Normalmente, quando começamos a praticar e a estudar o Yoga somos autênticos leões, com muita vontade e entusiasmo para praticar e aprender. À medida que o tempo vai passando, se não mantivermos este abhyāsa, esta vontade tende a murchar quando nos deparamos com os obstáculos naturais que vão surgindo no caminho. Eventualmente, podemos até interromper a prática e o estudo por desânimo, por falta de motivação, por não vermos os resultados que esperávamos, por falta de confiança ou por outra coisa qualquer e, ao interrompermos, quebramos o processo de crescimento.

A evolução não se dá num fim-de-semana ou em meses, pode demorar uma vida inteira ou vidas! Portanto há que ter paciência e confiança no método e no professor para continuarmos firmes no caminho e isso requer maturidade por parte do praticante. O praticante deve escolher um tempo sustentável para praticar e estudar, de forma a não desanimar a meio do caminho com a eventual exigência que colocou a si mesmo. Com uma disciplina forte vamos ganhando os benefícios do Yoga e ao sentirmos esses benefícios vamos querer praticar e estudar mais e com maior gosto, reforçando o nosso abhyāsa.

O abhyāsa é ainda alimentado pela presença em Sat Sangas, onde convivemos com outras pessoas que partilham a mesma sede pelo conhecimento e onde normalmente escutamos um professor que tem mais experiência de Yoga e nos dá um alento extra através das suas palavras e conhecimento.

Abhyāsa é fazer um pacto comigo mesmo, assumir o compromisso de dirigir os meus maiores esforços, de forma constante, para o conhecimento de mim mesmo. Somente com este abhyāsa é que podemos esperar uma mente preparada para o ensinamento de Vedānta, uma mente com uma boa dose de discernimento, desapego, tranquilidade, concentração, expansão e valores.

dåñöänuçravikaviñayavitåñëasya vaçékärasaïjïä vairägyam || 15 ||

[Quando o yogi] fica livre de todo o desejo pelos objectos vistos ou revelados [por outrem], adquire um estado de domínio e atentividade chamado vair€gya.

dåñöa = o que é visto
anuçravika = aquilo que é ouvido ou recebido como testemunho de outrem
viñaya
= objecto
vitåñëasya = referente àquele que é livre de desejos
vaçékära = domínio, controle

saïjïä = consciência, atentividade, unidirecionalidade da mente
vairägya = desapego, ausência de desejos

Depois de explicar em que consiste abhyāsa, Patañjali apresenta-nos o segundo pilar onde deve assentar o Yoga, vairāgya. Vairāgya, o desapego, é um conceito que pode suscitar más interpretações e, portanto, necessita de uma boa reflexão da nossa parte.

Este “livre de desejos” que Patañjali refere não quer dizer sem desejos. Não é possível ao ser humano ser sem desejos, o desejo é um poder que o ser humano possui, aliás um poder que o distingue dos outros seres vivos. Graças a esse poder o ser humano pode, por exemplo, empreender a busca pelo auto-conhecimento. Mumukutvam é esse desejo ardente pela liberação. Portanto, ter desejos não é algo negativo. O problema não é desejar, o problema é ser governado pelos desejos, ser levado a fazer qualquer coisa para realizar os desejos esquecendo, muitas vezes, os nossos valores pelo que é adequado e correcto.

A mente tem uma percepção subjectiva do mundo julgando que os objectos, experiências ou pessoas têm a capacidade de nos fazerem felizes ou infelizes. Ao pensarmos desta maneira vivemos em busca daqueles objectos que nos proporcionem prazer e tentando evitar aqueles que julgamos serem portadores de sofrimento. O Yoga não diz que é a presença ou ausência dos objectos que nos faz felizes mas sim que a felicidade que tanto buscamos é nossa natureza real.

Como diz o Swami Paramarthananda: “Desapego não é abandonar o mundo mas sim abandonar a ilusão de que é através do mundo e de seus objectos que alcançaremos a felicidade”. Desapegar-me não significa deixar os meus afazeres, deixar as responsabilidades que tenho com a minha família, amigos e trabalho e isolar-me numa montanha. Isso é fugir. E se eu preciso de fugir do mundo para resolver os meus problemas é porque eu ainda não os resolvi e a única forma de resolver os problemas advindos das relações que estabeleço no mundo é, no mundo, resolver esses problemas. Senão, para onde eu for, os problemas irão comigo.

Vairāgya é a consequência natural de viveka, a discriminação entre o que é real e eterno (o Ser, Brahman) e o que é aparente e não-eterno (mithyā). Quando temos esta capacidade de discernir, reconhecemos mais facilmente a incapacidade que o mundo tem para nos fazer felizes, para nos proporcionar um estado de ausência de dependência. E quando nos damos conta disso o desapego surge naturalmente. Até nos darmos conta disso estamos apegados a tal objecto, situação, pessoa, etc.

Desapego é olhar para os objectos tal como são, sem emprestar a minha subjectividade, sem projectar neles o poder de me fazer feliz ou infeliz. Ver uma casa como uma casa e não como uma fonte de felicidade, ver o dinheiro como dinheiro, a pessoa amada tal como é e não como uma extensão de mim mesmo. Compreendo que todas estas coisas podem trazer alegria ou tristeza ou um misto dos dois e que esses estados são transitórios, começam e acabam. Percebo que em todo o ganho existe uma perda e que, depois de satisfazer um desejo, um novo desejo sempre surge. Entendo que tudo aquilo que é observável é limitado no tempo e espaço e por isso aquilo que me pode proporcionar é também limitado.

Se estou convencido que tendo tal casa a minha segurança está garantida, no dia em que a casa se for a minha segurança vai junto. Se julgo que na ausência de tal pessoa posso finalmente ser livre, a minha felicidade fica dependente da presença dessa pessoa e portanto é uma liberdade limitada. Entender que a minha segurança, a minha felicidade, a minha liberdade e o meu bem-estar na vida não dependem da presença ou ausência dos objectos é viveka, discernimento. E este discernimento conduz a vairāgya.

Assim, vou abandonando as falsas expectativas que criei acerca do mundo e seus objectos. Os objectos não me prendem, eu os prendo por causa do valor subjectivo que projecto neles. Quando compreendo isto a prisão desaparece e vejo as coisas tal como são. Isto é vairāgya.


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