abhyäsavairägyäbhyäà
tannirodhaù || 12 ||
Isso [a cessação da identificação com os vrttis, consegue-se] através da repetição
e do desapego.
abhyäsa = repetição, disciplina, prática vairägya = desapego abhyäà = através de tan = isso nirodhaù = desidentificação
Depois de Patañjali
nos enumerar os tipos de instabilidade da consciência nos sūtras
anteriores, agora apresenta-nos duas soluções para eliminarmos a identificação
com essas instabilidades. Abhyāsa, a prática constante e Vairāgya,
o desapego, são então os dois pilares onde assenta o Yoga de Patañjali,
ou seja, são os dois pilares para podermos ter um controle sobre os nossos
pensamentos.
A proposta do Yoga não é de todo evitar os
pensamentos ou tentar eliminá-los, mas sim perceber que aquilo que eu sou não é
os pensamentos. Sabendo que a função da mente é pensar e que isso nos é útil no
dia-a-dia, o que há a fazer é saber utilizar a mente para nosso benefício e não
deixar que seja a mente a utilizar-nos. Da mesma forma que eu conduzo um carro
(o veículo), também deveria ser eu a conduzir a mente (um outro veículo à minha
disposição).
O método para disciplinar a mente e ter as rédeas
sobre ela é a prática constante e o desapego. Aliás, este método é também ensinado por Kṛṣṇa a Arjuna na Bhagavad Gītā,
capítulo 6: “Sem dúvida, ó Mahābāhu [Arjuna], a mente é agitada e
difícil de ser controlada. Mas, Kaunteya [Arjuna], ela é
disciplinada através da prática e do desapego. O Yoga é difícil de ser
alcançado por aquele cuja mente não foi disciplinada. Esta é a minha visão. Mas
pode ser alcançado por aquele cuja mente está sob o seu comando, por aquele que
se esforça através dos meios adequados [abhyāsa e vairāgya].”
Se pensarmos numa
bateria abhyāsa seria o pólo positivo e vairāgya o pólo negativo.
Abhyāsa consiste em praticar de forma constante e responsável, em
cultivar um estilo de vida de Yoga, em viver em Yoga. Em abhyāsa a ideia
fundamental é não desistir. Vairāgya consiste em desapegar-se, desprender-se
dos apegos, das aversões e das falsas identidades. Saber ver as coisas como
elas são, com objectividade. Em vairāgya a ideia fundamental é saber soltar,
deixar ir, deixar fluir.
A disciplina e
determinação de abhyāsa leva-nos na direcção certa enquanto que vairāgya
permite-nos continuar a viagem interna sem ficarmos agarrados aos prazeres e
dores que vamos experienciando ao longo do caminho.
tatra
sthitau yatno’bhyäsaù || 13 ||
Dos dois [anteriormente mencionados], abhy€sa é o esforço
estabelecido [na desidentificação com os pensamentos].
tatra = dos dois sthitau = estabelecido yatna = esforço abhyäsa = repetição
Abhyāsa, a prática responsável e constante (como
definiu o comentador dos sūtras, Vyāsa), é saber ver como a mente, de
novo e de novo, é apenas um instrumento para ser utilizado pelo Eu, ātmā.
Sendo um instrumento é diferente daquele que o utiliza, Eu. Os pensamentos são
eu, mas Eu sou muito mais do que simples pensamentos, Eu sou aquele que observa
os próprios pensamentos.
Uma vez que temos
uma percepção equivocada daquilo que somos (pensamos ser os nossos
pensamentos), é necessário um constante
esforço e disciplina para vermos a mente com uma certa distância e assim
reconhecermos a natureza do Eu, que é livre de pensamentos. Isto é abhyāsa.
Dentro do
contexto da meditação abhyāsa inclui a prática de japa, a
repetição de um mesmo mantra. O japa permite ao praticante
entender o processo de pensar, perceber as respostas condicionadas da mente, os
apegos e aversões, as facilidades e dificuldades da própria mente para assim poder
ter uma mestria sobre ela. Mas esta disciplina pode e deve ser aplicada a todas
as situações do dia-a-dia bem como à própria prática de Yoga que fazemos
diariamente, como veremos a seguir.
sa tu
dérghakälanairantaryasatkäräsevito dåòhabhümiù || 14 ||
Porém, esse [abhy€sa] estabelece-se firmemente pela prática ininterrompida,
por longo tempo
e com real dedicação.
sa = esse tu = porém, mas dérgha = longo käla = tempo nairantarya = “sem diferença”, ininterrompidamente, incessantemente satkära = reverência, dedicação real
äsevitaù = praticado
dåòha = firme
bhümi = terra, estabilização
Para que abhyāsa dê seus
frutos e funcione é necessário que seja feito por um longo tempo, de forma
ininterrompida e com profunda e real dedicação. As mudanças na nossa vida não acontecem de um dia para o outro. Se
decidimos empreender o caminho do Yoga com o objectivo de conhecermos a nossa
natureza real, a de que somos livres de limitação, vamos depararar-nos com
diversas dificuldades colocadas pelos condicionamentos construídos por nós
próprios ao longo desta e de outras vidas.
Sendo assim, é necessária uma
grande disciplina por parte do praticante, uma grande preseverança e dedicação
ao longo da vida para poder ir desmanchando as falsas noções que tem acerca de
si mesmo. Patañjali diz-nos
claramente neste sūtra para termos
uma vida de Yoga, viver uma vida dedicada inteiramente ao Yoga. Abhyāsa
é manter como prioridade número um a libertação, Mokṣa.
Normalmente, quando começamos a praticar e a estudar o Yoga somos
autênticos leões, com muita vontade e entusiasmo para praticar e aprender. À
medida que o tempo vai passando, se não mantivermos este abhyāsa, esta vontade tende a murchar quando nos deparamos com os obstáculos
naturais que vão surgindo no caminho. Eventualmente, podemos até interromper a
prática e o estudo por desânimo, por falta de motivação, por não vermos os
resultados que esperávamos, por falta de confiança ou por outra coisa qualquer
e, ao interrompermos, quebramos o processo de crescimento.
A evolução não se dá num fim-de-semana ou em meses, pode demorar uma
vida inteira ou vidas! Portanto há que ter paciência e confiança no método e no
professor para continuarmos firmes no caminho e isso requer maturidade por
parte do praticante. O praticante deve
escolher um tempo sustentável para praticar e estudar, de forma a não
desanimar a meio do caminho com a eventual exigência que colocou a si mesmo. Com
uma disciplina forte vamos ganhando os benefícios do Yoga e ao sentirmos esses
benefícios vamos querer praticar e estudar mais e com maior gosto, reforçando o
nosso abhyāsa.
O abhyāsa é ainda alimentado
pela presença em Sat Sangas, onde
convivemos com outras pessoas que partilham a mesma sede pelo conhecimento e onde
normalmente escutamos um professor que tem mais experiência de Yoga e nos dá um
alento extra através das suas palavras e conhecimento.
Abhyāsa é fazer um pacto comigo mesmo, assumir
o compromisso de dirigir os meus maiores esforços, de forma constante, para o conhecimento de mim mesmo. Somente com este abhyāsa é que podemos esperar uma mente preparada para o
ensinamento de Vedānta, uma mente com
uma boa dose de discernimento, desapego, tranquilidade, concentração, expansão
e valores.
dåñöänuçravikaviñayavitåñëasya
vaçékärasaïjïä vairägyam || 15 ||
[Quando o yogi]
fica livre de todo
o desejo pelos
objectos vistos ou
revelados [por outrem],
adquire um estado
de domínio e atentividade chamado
vair€gya.
dåñöa = o que é visto anuçravika = aquilo que é ouvido ou recebido como testemunho de outrem viñaya = objecto vitåñëasya = referente àquele que é livre
de desejos vaçékära = domínio, controle
saïjïä
= consciência, atentividade, unidirecionalidade da mente vairägya = desapego, ausência
de desejos
Depois de explicar em que consiste abhyāsa,
Patañjali apresenta-nos o segundo
pilar onde deve assentar o Yoga, vairāgya.
Vairāgya, o desapego, é um conceito
que pode suscitar más interpretações e, portanto, necessita de uma boa reflexão
da nossa parte.
Este “livre de desejos” que Patañjali
refere não quer dizer sem desejos. Não é possível ao ser humano ser sem
desejos, o desejo é um poder que o ser humano possui, aliás um poder que o
distingue dos outros seres vivos. Graças a esse poder o ser humano pode, por
exemplo, empreender a busca pelo auto-conhecimento. Mumukṣutvam é esse desejo ardente pela liberação. Portanto, ter desejos não é algo
negativo. O problema não é desejar, o
problema é ser governado pelos desejos, ser levado a fazer qualquer coisa
para realizar os desejos esquecendo, muitas vezes, os nossos valores pelo que é
adequado e correcto.
A mente tem uma percepção
subjectiva do mundo julgando que os objectos, experiências ou pessoas têm a
capacidade de nos fazerem felizes ou infelizes. Ao pensarmos desta maneira vivemos em busca
daqueles objectos que nos proporcionem prazer e tentando evitar aqueles que
julgamos serem portadores de sofrimento. O Yoga não diz que é a presença ou
ausência dos objectos que nos faz felizes mas sim que a felicidade que tanto
buscamos é nossa natureza real.
Como diz o Swami Paramarthananda:
“Desapego não é abandonar o mundo mas sim abandonar a ilusão de que é através
do mundo e de seus objectos que alcançaremos a felicidade”. Desapegar-me não
significa deixar os meus afazeres, deixar as responsabilidades que tenho com a
minha família, amigos e trabalho e isolar-me numa montanha. Isso é fugir. E se
eu preciso de fugir do mundo para resolver os meus problemas é porque eu ainda
não os resolvi e a única forma de resolver os problemas advindos das relações
que estabeleço no mundo é, no mundo, resolver esses problemas. Senão, para onde
eu for, os problemas irão comigo.
Vairāgya é a consequência natural de vivekaḥ, a discriminação entre o que é real e
eterno (o Ser, Brahman) e o que é
aparente e não-eterno (mithyā).
Quando temos esta capacidade de discernir, reconhecemos mais facilmente a
incapacidade que o mundo tem para nos fazer felizes, para nos proporcionar um
estado de ausência de dependência. E quando nos damos conta disso o desapego
surge naturalmente. Até nos darmos conta disso estamos apegados a tal objecto,
situação, pessoa, etc.
Desapego é olhar para os
objectos tal como são, sem emprestar a minha subjectividade, sem projectar
neles o poder de me fazer feliz ou infeliz. Ver uma casa como uma casa e não como uma fonte de felicidade, ver o
dinheiro como dinheiro, a pessoa amada tal como é e não como uma extensão de
mim mesmo. Compreendo que todas estas coisas podem trazer alegria ou tristeza
ou um misto dos dois e que esses estados são transitórios, começam e acabam. Percebo
que em todo o ganho existe uma perda e que, depois de satisfazer um desejo, um
novo desejo sempre surge. Entendo que tudo aquilo que é observável é limitado
no tempo e espaço e por isso aquilo que me pode proporcionar é também limitado.
Se estou convencido que tendo tal casa a minha segurança está
garantida, no dia em que a casa se for a minha segurança vai junto. Se julgo
que na ausência de tal pessoa posso finalmente ser livre, a minha felicidade
fica dependente da presença dessa pessoa e portanto é uma liberdade limitada. Entender
que a minha segurança, a minha felicidade, a minha liberdade e o meu bem-estar
na vida não dependem da presença ou ausência dos objectos é vivekaḥ, discernimento. E este discernimento conduz a vairāgya.
Assim, vou abandonando as falsas expectativas que criei acerca do mundo
e seus objectos. Os objectos não me prendem, eu os prendo por causa do valor
subjectivo que projecto neles. Quando compreendo isto a prisão desaparece e
vejo as coisas tal como são. Isto é vairāgya.
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