Cada pessoa toma contacto com o advaita vedānta a partir da sua própria experiência pessoal. Esse nosso contexto económico, social e familiar com as suas idiossincrasias traz a seu tempo dúvidas e questões peculiares. No entanto, há uma questão transversal a todo o estudante, que cedo ou tarde aparece, e é relativa ao porquê de se estudar o śāstra, o porquê de se estudarem as escrituras.
De facto, as próprias escrituras parecem apontar que brahman não pode ser revelado por palavras:
yato vācho nivartante aprāpya manasa saha …
"(Brahman é aquele) de onde as palavras, junto com a mente, regressam sem o alcançar..." Taittirīya upaniṣad, brahmavallī, 9
na tatra chakṣurgacchati na vāggacchati no mano …
"Os olhos não alcançam lá, a palavra também não vai lá, nem mesmo a mente..." Kena upaniṣad, 1, 3
Este problema da relação de brahman com as palavras resulta até da lógica. De facto, as palavras só podem revelar um objecto se ele preencher certas condições. Essas condições são chamadas śabda pravṛtti nimitta, condições que o objecto deve preencher para poder ser revelado por palavras. A tradição analisou exaustivamente esta questão e mostra-nos que cinco condições são requeridas para as palavras revelarem alguma coisa. São elas: rūḍhi, jāti, guṇa, kriyā e sambandha. Sucede que brahman não preenche estas condições, ele é śabda pravṛtta nimitta rahitam brahma.
Então, como pode este brahman (śabda pravṛtta nimitta rahitam brahma) ser revelado pelo estudo das escrituras do vedānta? Não será um contra-senso, sendo o vedānta śravaṇam a exposição e análise às palavras do vedānta e sendo o vedānta tomado como um meio de conhecimento na forma de palavras, śabda pramāṇa?
Vejamos primeiro as condições que o objecto deve preencher para poder ser revelado por palavras.
A primeira condição é chamada rūḍhiḥ, que significa ser disponível para percepção directa. Se um objecto está disponível para percepção directa, podemos ver o objecto. Posso ver eu, tu, todos e podemos chegar a uma conclusão quanto ao que é e como se chama. Uma vez que o tenhamos visto, pelo menos uma vez, podemos depois usar a palavra, o seu nome. Essa palavra passa a revelar o objecto na minha mente, na tua mente, na de todos. A palavra pode comunicar porque o objecto foi visto por mim, por ti e por cada um. Posso falar do sol e imediatamente todos entendemos porque já todos vimos o sol. As palavras podem revelar um objecto se esse objecto é evidente para todos. Assim, podemos ter uma expressão comum entendida por todos e em relação a ela existe um acordo, em que o som símbolo "sol" se refira ao sol. Da mesma forma, posso usar a palavra, lua, bola, montanha e porque cada um deles é conhecido, é perceptível, posso revelá-los através de palavras.
A segunda condição é jātih. Jāti significa uma espécie. Imaginem que existe uma árvore num local distante. Nós não vemos a árvore, mas sabemos o que é uma árvore, porque vemos outras árvores e entendemos o significado da palavra árvore. Se nós entendemos a palavra árvore, mesmo não tendo experimentado, visto, aquela árvore distante, sabendo que essa árvore pertence à mesma espécie de árvores que vimos noutro lado, também podemos conhecer a que é distante. No caso do sol já não posso aplicar este princípio, porque o sol é apenas um. No entanto, no caso da árvore, apesar de não a termos visto, podemos entender. Se alguém diz que existe uma palmeira no céu, eu nunca estive lá, mas sei o que é uma palmeira. Uma palmeira, seja ela qual for, pertence à mesma espécie. Se usamos uma palavra para revelar um membro de uma espécie, a mesma palavra pode revelar qualquer outro membro dessa espécie. Portanto, se um objecto cai numa espécie, pode ser revelado pela palavra.
A terceira condição é guṇa, um objecto pode ser revelado pelos seus atributos ou qualidades. Mesmo não conhecendo o objecto, eu posso dizer "por favor traz-me aquela coisa laranja". Eu não conheço o objecto, mas revelei-o através da sua cor, que é um atributo ou guṇa. Assim, porque um atributo é sempre de uma substância, podemos fazer uso dele para revelar "a coisa" que o sustenta.
A quarta condição é karma ou kriyā, a função. Sem conhecer nenhuma das condições anteriores, eu posso dizer, "por favor chama o jardineiro". Mesmo não tendo visto a pessoa, não conhecendo as suas características, posso revelar pela função. Se alguém pergunta o que é o vento, posso dizer que o que move as folhas de uma árvore é o vento.
Por fim, a quinta condição é sambandha ou relação. Através da relação também posso revelar alguém como sendo pai, irmão, mãe. Posso identificar o saleiro tão tipicamente português como aquilo que está em cima da mesa. A relação entre a mesa e o objecto, revela o objecto como saleiro.
Assim, temos rūḍhi, jāti, guṇa, kriyā e sambandha e temos ātmā/brahman que não tem nenhum deles.
Brahman não tem rūḍhi, porque se brahman fosse de percepção comum e evidente para todos como o sol estaria disponível para ser conhecido pelos sentidos.
Jāti também não está disponível, porque não existe a espécie de brahman. Uma espécie só aparece quando existem muitos membros com as mesmas características. Podemos falar da espécie humana porque existem muitos seres humanos. Não podemos falar de espécie em relação a uma coisa que é ekam advitīyam, um, sem segundo. Não podemos falar da espécie do sol, porque o sol é apenas um. Assim, brahman não tem espécie.
E guṇa? Não podemos revelar brahman pelos seus atributos, porque ele é livre de atributos, nirguṇam.
Brahman também não pode ser revelado por uma função, kriyā, porque ele não tem nenhuma acção, é akartā.
Por fim, também não podemos falar de sambandha, relação, porque sambandha requer dois e brahman é, como se disse, ekam eva advitīyam. Não se pode falar de relação como referência ao não dual.
Então se brahman não pode ser revelado por palavras, o vedānta pramāṇam seria incapaz de revelar brahman. Frequentes vezes, esta objecção é levantada de maneira a descartar o śāstra e por isso, muitos se afastam dele.
Vejamos melhor a questão. Se as palavras de forma directa não podem revelar brahman, ainda assim, as palavras podem, de forma engenhosa, revelá-lo usando um método. É isso que as upaniṣads conseguem fazer e é por isso que dizemos que um guru é necessário para lidar com as palavras da upaniṣad, porque elas não funcionam no sentido normal, mas funcionam num sentido diferente. As upaniṣads usam diferentes técnicas para este propósito. Quais são elas?
1) Dizemos que a upaniṣad pode revelar brahman ao usar atributos aparentes ou atributos não reais. Mesmo se brahman não tem nenhum atributo real, as upaniṣads conseguem revelar brahman com a ajuda de atributos aparentes (mithyā). É como revelar o céu usando a cor azul do céu que é o atributo aparente do céu. O espaço não tem nenhuma cor real, mas tem essa cor aparente. Da mesma forma, as águas azuis do oceano. O azul pode ser usado para revelar o oceano mesmo se a água do oceano não seja realmente azul, porque é incolor. Posso também revelar o sol, falando do sol que nasce e se põe, apesar de o "nascer" e "pôr" não serem atributos reais do sol. O sol não nasce nem se põe, é a terra que se move.
Assim, as palavras podem revelar brahman com a ajuda de atributos aparentes. E no caso de ātmā brahman o atributo aparente de que fazemos uso é sākṣītvam. O atributo de testemunha de ātmā brahman não é um atributo real, é apenas do ponto de vista do mundo aparente, mithyā jagat, que brahman é chamado testemunha. Brahman não tem nem esse sākṣītvam como verdadeiro atributo, mas usando esse estatuto aparente revelamo-lo.
2) Outra possibilidade é usar um atributo temporário ou extrínseco para revelar um objecto. O exemplo dado no śāstra é o de uma pessoa identificar uma casa que está entre muitas casas semelhantes, da mesma cor, arquitectura, janelas e portas. No momento em que a quer identificar, um corvo aparece e pousa na casa. Esse corvo não se torna uma atributo intrínseco da casa, mas é uma indicador extrínseco, a casa do corvo é a casa do José Silva. Uma vez que a pessoa entenda qual é casa, ela sabe que o corvo não pertence à casa, não é o atributo permanente.
De forma, semelhante, a consciência, ātmā, não pode ser revelada directamente, mas nós usamos a associação temporária com o corpo e apontamos que a consciência é aquilo que não é parte do corpo, produto, propriedade do corpo, mas algo diferente que permeia e torna o corpo senciente. Este corpo não é uma parte intrínseca da consciência, porque o corpo cai depois de algum tempo. Ainda assim, uso o corpo temporário, para revelar a consciência permanente.
3) Às vezes, a própria ausência de atributos pode ser usada como um método de revelação. Por exemplo, quando existem vários copos, e em todos existe alguma coisa, água, sumo, limonada, e num não existe nada, posso dizer "por favor, traz-me o copo vazio". O que significa este vazio? O vazio, a vacuidade não é um atributo positivo do copo, o vazio revela a ausência de coisas. Embora a ausência de coisas em si não seja um atributo positivo, é de certa forma um atributo negativo que é capaz de revelar aquele copo particular. Quando várias pessoas usam óculos e uma não usa, eu posso indicá-la como a pessoa sem (livre) de óculos. Aqui o atributo que uso para revelar a pessoa, não é a presença de uma coisa, mas a ausência de qualquer coisa. Essa ausência como que se torna o atributo. O que é a calvície, senão a ausência de cabelo. Assim, a ausência de atributo pode ser usada para revelar, como em anantam brahma, brahman é o livre de limitação.
4) Por fim, sem falar de brahman, falamos de outra coisa e indirectamente falamos de brahman, ou seja, falamos, sem falar. Uma mãe de dois filhos diz que o filho mais velho é muito, muito inteligente. Sem que tenha dito uma palavra acerca do mais novo, ficamos a saber que no que toca à inteligência ele é o patinho feio. Imaginem, 3 pessoas a praticar yoga numa sala, o Lucas, a Camila e a Maria. O Lucas sai por um minuto e quanto volta sente o cheiro a incenso e pergunta "quem acendeu o incenso?" A Maria diz que não foi ela. O que significa isso? Quando o diz, indirectamente ela comunica que foi a Camila quem acendeu.
É como ao sair de uma aula de yoga perguntar à minha colega "Para onde vais?" E ela responder "Posso deixar-te onde quiseres". Eu só perguntei "aonde vais?", mas sem o dizer perguntei se me podia dar boleia e a pessoa entendeu-o.
Isto é falar sem falar, mauna vyākyānam. Muitas pessoas pensam que mauna vyākyānam é silêncio, mas silêncio não é o mauna vyākyānam. O silêncio não revela nada a não ser que a pessoa o interprete correctamente. A comunicação indirecta, implícita é o mauna vyākyānam.
No Dakṣiṇamūrti dhyāna śloka diz-se mauna-vyākhyā-prakaṭita-para-brahma-tatvam... a verdade que é o brahman livre de limitação é revelada pelo silêncio.
Maunam é o silêncio e vyākhyānam é a exposição, o upadeśa, o ensinamento. Prakatitam significa que é tornado conhecido. Assim, o significado escondido da upaniṣad é tornado conhecido na forma de silêncio. E o que é tornado conhecido? Parabrahmatatvam, aquilo que é a verdade e livre de limitação. Como é que esta verdade é conhecida pelo ensinamento que é na forma de silêncio? Ela está escondida daquele que busca nas palavras da upaniṣad e está escondida pela ignorância. Mesmo estando disponível nas palavras da upaniṣad, ela está escondida porque as palavras não revelam directamente, não é o significado imediato de uma palavra. Brahman não é o significado imediato das palavras, mas o significado implícito e por isso o ensinamento e o contexto se tornam tão importantes. As palavras vão até um ponto e param ali e o mais é entendido implicitamente. Sendo ensinamento, sendo śabda lakṣya, ainda assim, é silêncio, maunam.
Existe um método de comunicação não verbal, e a upaniṣad usa este método que é o famoso neti neti. O neti neti não fala positivamente de ātmā, mas nega todo o anātmā, não fala positivamente do sujeito, mas nega todos os objectos. E quando todos os objectos são negados, o que fica para trás é o sujeito inegável. Na Kena upaniṣad é dito:
anyadeva tadviditādatho aviditādadhi iti śuśruma pūrveṣāṁ ye nastadvyachachakṣire
"(este ātmā) é de facto diferente do conhecido, e também do desconhecido. Assim ouvimos daqueles que vieram antes de nós e que no-lo ensinaram." Kena upaniṣad, 1, 3
Além do conhecido e desconhecido só existe uma coisa, o conhecedor, desprovido desse papel relativo. Implicitamente, através do lakṣaṇā vṛtti, ao usar um ou mais destes métodos as palavras upaniṣads revelam, trazem o conhecimento. Esse conhecimento remove a ignorância e ātmā brahman sendo sempre evidente por si mesmo, svaprakāśa, o já alcançado, svatasiddha, é visto como eu mesmo, aham brahma asmi. |