De todos as escrituras da tradição, provavelmente, a Bhagavad Gita é a mais famosa, a mais lida e a mais comentada. Existem comentários à Gita escritos várias pessoas, de todas as áreas, mais ou menos famosas. Na maior parte desses comentários cada um lê a Gita de uma forma pessoal e retira um significado diferente das interpretações dos demais.
Alguns dizem que a Bhagavad Gita trata apenas sobre o karma, outros que dizem que a essência da Gita é bhakti, outros ainda afirmam que apenas se debruça sobre Yoga. Cada um encontra o seu próprio significado e quando tentamos descobrir qual é o significado original que Krsna transmitiu ficamos confusos. Cada um afirma-se certo e os demais errados.
O consolo é que a confusão não é de agora, mas já existia há centenas de anos no tempo de Sri Shankaracharya. Na sua introdução à Bhagavad Gita Bhasya faz a seguinte afirmação:
tad idam gita-shastram samasta-vedartha-sara-sangraha-bhutam durvijñayartham tad-arthaviskaranaya anekair vivrta-pada-padartha-vakya-vakyartha-nyayam api atyanta-viruddhanekarthatvena laukikair grhyamanam upalabhyahamvivekato'rtha-nirdharanartham samksepato vivaranam karisyami |3 "Esta escritura da Gita é a essência de tudo o que segue sob o nome dos Vedas, mas o seu sentido é difícil de apreender. Apesar das suas palavras, significado das palavras, das frases e argumentos terem sido examinados por muitos comentadores, parece-me que as pessoas não a compreendem por causa da multiplicidade e contraditoriedade dos comentários. Tomando isto em consideração, exporei o seu conteúdo, explicando brevemente o texto com o objectivo de determinar o seu sentido preciso."
A pergunta que se coloca é: não será Shankara mais um que afirma a sua razão por oposição aos demais? De facto, porque seguir a orientação traçada por Sri ®ankaracharya?
Ele aponta a resposta: tad idam vedartha-sara-sangraha-bhutam gita-shastram. Shankara analisa a Bhagavad Gita como contendo a essência do Veda e não como um texto independente. A Gita é tomada como smrti grantha e por isso entendida à luz de Shruti, o Veda. Shruti é o conhecimento revelado por se considerar não ser o produto de um intelecto humano - apauruseya shastram - e smrti é o que ficou de memória do Veda. Este corpo de textos tem autores definidos que procuraram desdobrar o sentido dos Vedas.
Assim, se existe uma contradição ou aparente contradição entre Shruti e smrti, se existe uma dúvida no sentido ou na interpretação, ela tem de ser entendida e resolvida no contexto dos Vedas.
Desta forma, se conhecermos o contexto e ensinamento central dos Vedas, também conheceremos o sentido da Bhagavad Gita. É exactamente este o caminho seguido por Shankara: sempre que há uma controvérsia ou dúvida, ele recorre ao Veda.
O Veda enquanto corpo de conhecimento tem um ensinamento central: eliminar o sofrimento do ser humano (samsara) - moksa.
A análise do ensinamento revela que a origem dos nossos problemas nasce da ignorância, uma ignorância muito própria que é a ignorância de si mesmo. Somos ignorantes da nossa própria natureza enquanto plenitude - purŠa svarupa.
No caso, como a ignorância é de nós mesmos, o problema é ainda maior. Em relação aos objectos no mundo, nós podemos ser só ignorantes, sem mais. Mas em relação à nossa identidade, ninguém pode permanecer apenas ignorante de si. Da ignorância nasce um erro, porque o ser humano tem sempre uma noção de si mesmo. Não existe apenas um vazio, uma ignorância vazia. Porque o ser humano não consegue relacionar-se consigo e o mundo sem uma noção de si, constrói uma identidade assente na ignorância existencial.
Uma vez que não nos vemos como completos, necessariamente vemo-nos como incompletos. Assim, ajñanam causa apurnatvam.
Se não estou completo comigo mesmo, a tendência natural é agarrar-me a coisas. Por causa do sentido de limitação, o ser humano tenta agarrar-se a coisas com a esperança de se tornar completo com a família, filhos, poder, posição, dinheiro, etc. Com esse desejo por completar-se com algo nasce uma dependência e um apego, raga e sanga.
Raga desenvolve-se e inevitavelmente a ansiedade ou medo emergem - bhayam. Porque no mundo tudo é impermanente, toda a associação resulta, eventualmente, em dissociação. Quando a separação do querido acontece, ou mesmo que seja apenas a antecipação da separação, o choque, o sofrimento e o vazio são inevitáveis. Assim, raga conduz a shoka, a tristeza.
Então a capacidade de discriminação, viveka shakti, perde-se, e o certo e o errado confundem-se. É o que se chama de moha.
Sendo ajñanam a causa do samsara, a solução é a remoção da causa. A solução para o problema do sofrimento é atma jñanam.
Na Chandogya Upanishad, Narada procura Sanatkumara e pede-lhe instrução. Nesse dialogo diz-lhe:
...shrutam hy eva me bhagavad-drshebhyah, tarati sokam atmavid iti; so'ham, bhagavah, shochami, tam ma, bhagavan, shokasya param tarayatu iti... "Foi ouvido por mim daqueles como tu, que aquele que conhece atma atravessa o sofrimento. Eu sou um sofredor assim, venerável senhor. Seria possível ajudar-me a atravessar para o outro lado do sofrimento." Chandogya Upanishad, VII, I, 3.
Atma jñanam é a solução directa,mas uma preparação faz-se necessária para que o conhecimento possa ser assimilado. A essa preparação chamamos jñana yogyata. Para ela os Vedas prescrevem um sadhana secundário (upaya).
Esta preparação consiste em dois aspectos a desenvolver na mente, chitta samskara e chitta ekagrata.
a) Chitta samskara ou chitta shuddhi é o refinamento ou purificação da mente. O conhecimento tem lugar na mente, no antahkaraŠa, e por isso a mente tem de possuir determinadas características. Na linguagem da Bhagavad Gita é o que se chama aprender a neutralizar os raga-dvesa, os gostos e aversões - fazer com que os gostos e aversões deixem de ser aprisionadores e se tornem privilégios. Um privilégio existe quando posso fazer uso dele, e não quando estou dependente dele.
b) Chitta ekagrata é a capacidade da mente se manter focada. A mente deve ser usada como um instrumento e essa capacidade é o que traduz chitta ekagrata.
As disciplinas que desenvolvem estas características tornam-se um meio, yoga, para moksa.
Assim, o Veda lida com dois assuntos essenciais jñana yogyata e jñanam.
Por causa destes dois assuntos, o próprio Veda é dividido em duas partes, Veda-purva e Veda-anta. O Veda-purva lida com os purusarthas dharma, artha e kama e com jñana yogyata. A parte que contém o método para chitta samskara é chamada de karma yoga e a parte que liga com chitta ekagrata, upasana yoga.
Esta é a visão do Veda e Shankara mostra-nos como a Bhagavad Gita também expressa a mesma visão. Se quiser saber mais sobre a Bhagavad Gita veja aqui
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