Especismo, até quando? Especismo, quem és tu?
O termo especismo foi criado pelo psicólogo britânico Richard Ryder na década de 70 e refere-se à atribuição de valores ou direitos diferentes, dependendo da espécie a que um determinad@ ser pertence. Remete de uma forma geral à discriminação arbitrária feita pel@ ser-human@, às outras espécies animais.
A maior parte d@s seres human@s são especistas com os animais não-human@s, considerando-@s seres inferiores e não lhes conferindo de uma maneira geral quaisquer direitos. Frequentemente comparado ao sexismo, machismo, racismo, xenofobia e outras formas de discriminação, que classificam @s seres em superiores e inferiores, o especismo pressupõe que os interesses de um individuo são de menor importância, pelo facto de pertencerem a uma espécie diferente da espécie humana.
A espécie humana, considerando-se superior às demais, sente-se no direito de instrumentalizar e oprimir @s outr@s animais das mais diversas formas. A racionalidade como capacidade exclusivamente humana é amiúde referida como justificação para esta suposta superioridade.
Especismo, de onde vens?
Esta herança religiosa e filosófica de supremacia humana, muito presente na cultura ocidental, remonta há mais de 2000 anos atrás, à corrente filosófica de Platão e do seu discípulo Aristóteles. Segundo este último, @s animais existiriam para servir o ser-human@ e a natureza seria essencialmente uma hierarquia na qual @s que possuem menor capacidade de raciocíno viveriam para servir @s que a possuem em maior grau. Esta visão, amparada pelo discurso bíblico, é ainda sustentada por Descartes, que no apogeu da racionalidade introduziu o conceito mecanicista d@ animal, ou seja, segundo ele, @s animais não possuem direitos, porque não pensam, não sentem e não comunicam. Mais tarde, Kant apoia também esta perspectiva, referindo-se aos animais como meros objectos, desprovidos de qualquer racionalidade ou estatuto moral. Houve também pensadores ao longo da história com visão diferente, entre eles, Pitágoras, mas infelizmente diria, foi a concepção especista que chegou ate nós.
Especismo: entre a crueldade e o sofrimento justificado pelas «necessidades» humanas
Pessoalmente, penso que qualquer pessoa que passe meia hora na companhia de um cão, pode admitir que @ animal possui sentimentos e racionalidade, já no que concerne ao reconhecimento de direitos a animais, como vacas, porcos, coelhos, etc é frequente depararmo-nos com uma atitude hostil e até mesmo jocosa da maioria das pessoas, quando se aborda a vida racional e emocional que estes animais têm. A esta diferença de consideração entre as espécies animais, dá-se o nome de especismo selectivo, quando consideramos um@ animal como membro da família e outr@ como comida.
O especismo está tão enraizado na nossa sociedade e na forma como somos educad@s e condicionad@s, que a subalternização d@s animais à espécie humana, é vista como normal. A sociedade contemporânea pode até rejeitar a crueldade, mas não rejeita o sofrimento animal necessário a satisfação do que considera serem as suas necessidades. Se víssemos alguém a espancar um animal no meio da rua, sem motivo aparente, grande parte de nós ficaria indignad@, mas aceitamos que um animal viva privado de luz natural e confinado a um espaço onde não se pode virar (como acontece na indústria da carne), para satisfazer a «nossa» necessidade de comer um bife.
Os animais também têm uma vida emocional e social? E têm a capacidade de sentir dor ou prazer?
Charles Darwin, o primeiro cientista de que há registo, a estudar de forma sistemática as emoções d@s animais, reconheceu as seis emoções primárias: alegria, tristeza, rancor, surpresa, medo e nojo. Desde então são vários os estudos comportamentais e neurobiológicos que corroboram esta ideia.
Nas últimas décadas, diversas pesquisas no campo da neurociência, biologia evolutiva e etologia cognitiva evidenciaram que muitas das capacidades atribuídas aos seres human@s também são partilhados pel@s animais não-human@s. Entre estas capacidades, salientam-se a memória, a identificação altruísta e empática, por vezes até inter-espécie, e a complexidade das redes e interacções sociais que desenvolvem.
A título de exemplo, a revista New Science (2 Dezembro 2011), publicou um estudo sobre a vida das baleias, que assegurava a existência de células fusiformes, na mesma zona do cérebro onde estão localizadas n@s human@s. Estas células estão relacionadas com a organização social, compreensão dos sentimentos d@s outr@s e empatia, que só por si requer um certo nível de pensamento consciente. Até então estas células só tinham sido reconhecidas n@s human@s e outros símios.
Os elefantes, animais naturalmente gregários, quando do seu grupo faz parte um elemento com capacidades físicas reduzidas, fazem pausas para esperar por ele, enquanto se deslocam.
Relativamente à senciência, a capacidade de se sentir dor e prazer, existem evidências de que pelo menos todos os vertebrados partilham as mesmas substâncias bioquímicas associadas a transmissão da dor. Entre as várias reacções à dor, evidenciam-se, dependendo d@s animais, o contorcer do corpo, a tentativa de fuga e a emissão de sons.
Hierarquias: quem manda aqui sou eu, human@!
Por mais evidências que se possam apresentar, inúmeras pessoas, seja da comunidade leiga ou cientifica continuam a acreditar que @s animais são meros objectos, activad@s por reacções aos estímulos ambientais. E assim se continua a tentar provar o óbvio, porque provavelmente é mais fácil fazer coisas desagradáveis a objectos sem sentimentos, tais como sujeitá-l@s a experiencias dolorosas, criá-l@s enjaulad@s, caçá-l@s e privá-l@s do direito mais básico, que tanto defendemos para «nós», o direito à vida.
Pessoalmente prefiro acreditar que uma boa parte das pessoas que conheço não está consciente da quantidade de sofrimento desnecessário que o seu estilo de vida inflige aos animais, que connosco partilham este mundo.
Especismo no dia-a-dia
O especismo está presente numa grande parte das acções que desenvolvemos no «nosso» dia-a-dia. Comecemos por analisar a nossa alimentação e a indústria animal a ela associada, a maior indústria responsável pelo sofrimento e morte de milhões de animais anualmente. Na indústria da carne, leite e ovos, os animais vivem frequentemente em gaiolas minúsculas ou apinhados em pequenos cercados, pisando, comendo e dormindo na lama e nas próprias fezes. De acordo com investigações feitas por Peter Singer e Jim Mason, uma percentagem de 10 a 15% d@s animais criad@s para alimentação humana morrem de stress, ferimentos ou doença, antes mesmo de serem considerad@s pront@s para irem para o matadouro.
Nos matadouros, devido a falhas frequentes nas linhas de abate, muit@s animais começam a ser desmembrad@s por máquinas antes mesmo de estarem totalmente inanimad@s ou inconscientes. Esta industria além de infinitamente atroz para com @s animais, tem também impactos psicológicos e emocionais extremamente nefastos na vida d@s trabalhador@s que lá operam. Há inclusivamente psicólog@s que defendem que este tipo de trabalho despoleta psicopatias, devido ao elevado nível de crueldade contínua a que se assiste e do qual se participa.
Testes em laboratório: a ciência da crueldade
Analisemos agora as experiências em laboratórios a que @s animais são submetidos para testar quase todos os produtos que figuram no «nosso» armário de casa de banho. Sabonetes, cremes, medicamentos, produtos de limpeza e de higiene pessoal, são massivamente testados em animais. As poucas marcas que não testam, fazem logicamente constar essa informação do seu rótulo.
Os animais e @s seres human@s diferem consideravelmente no que diz respeito à anatomia, fisiologia e metabolismo e portanto uma boa reacção de um animal a um determinado medicamento ou produto, não é garantia de uma boa reacção humana.
De acordo com o U.S. Food and Drug Administration Report: Innovation or Stagnation, Challenge and Opportunity on the Critical Path to New Medical Products, March 2004, a pesquisa com base em experimentação animal falha repetidamente e 92% das potenciais drogas farmacêuticas que são consideradas válidas após os testes em animais, sendo tidas como eficazes e seguras, não passam em ensaios clínicos em human@s, quer por causa da eficácia insuficiente ou de efeitos secundários indesejáveis. Dos 8% das substâncias que são aprovadas, metade são posteriormente retiradas do mercado porque os efeitos secundários, até mesmo letais nos seres humanos tornam-se evidentes.
Os testes em animais envolvem a indução propositada de doenças ou substâncias que tenham um efeito semelhante à doença no seu organismo. As vítimas dos laboratórios são, entre outr@s, porquinh@s-da-índia, coelh@s, rat@s, cães, gat@s e primatas. Estes animais vivem a maioria, senão a totalidade das suas vidas em gaiolas extremamente pequenas, sozinh@s e morrerão no laboratório, quando @s cientistas já não precisarem deles.
No domingo vamos ao Zoo, para as crianças verem os animais
O especismo está presente também na forma como nos vestimos, com peles de outr@s animais, em muitas actividades de entretenimento e até na forma como interagimos com os animais «de companhia», autodenominando-nos como seus donos e reduzindo-os à categoria de objecto do qual @ ser human@ é proprietário. Desde os jardins zoológicos, aos circos e parques aquáticos com cetáceos, @s animais são confinados a espaços demasiados pequenos para as características da sua espécie, privados de interacção social e por vezes submetidos a treinos cruéis com choques elétctricos, como é o caso dos leões em circos ou das corridas de cavalos.
Uma vida ética, olhar construtivamente crítico sobre as «nossas acções»
Reavaliar a nossa relação com @s outr@s animais implica fazer perguntas difíceis e observar se as nossas acções estão de acordo com as nossas convicções. Reconhecer um animal com um valor próprio, intrínseco, envolve no mínimo reconhecer o seu direito à vida, à liberdade e à integridade corporal.
O primeiro passo para a mudança é o questionamento sobre esta relação de poder que estabelecemos com @s animais. Na visão de alguns pensadores, a qual partilho, se traçarmos a história dos avanços éticos na nossa sociedade, o fim do especismo é o próximo passo civilizacional. Na esfera crescente da inclusão ética, após o desafio intelectual do fim do colonialismo, do racismo, e do sexismo, o próximo passo será a igual consideração de interesses para @s outr@s animais. O interesse que um animal de qualquer espécie tem em não sentir dor, é igual ao interesse que qualquer human@ tem em não sentir dor.
Ao rejeitar o especismo não se pretende propor o conceito simplista de que @s animais human@s e não-human@s sejam iguais, tal como uma vaca não é igual a um leão, a proposta é que tod@s @s seres tenham os seus interesses respeitados.
Fontes:
Libertação Animal, Peter Singer
Manifesto dos Animais, Marc Bekoff
A Vida Emocional dos Animais, Marc Bekoff
Como Comemos, Peter Singer e Jim Mason
A Injustiça do Especismo, Carla Forte Molento
O Direito e a Animalidade, Palestra de Fernando Araújo, Jornadas Os Animais no Direito 2016. |