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Prática

Nádí shodhana pránáyáma, o pránáyáma nas escrituras clássicas do Hatha Yoga
Miguel Homem
17-12-2005



Vimos dar início a um estudo comparativo de alguns pránáyámas nos textos clássicos do Hatha Yoga, o Hatha Yoga Pradipika, Gueranda Sámhita e Shiva Sámhita, com o que se pretende dar a conhecer parte daqueles textos bem como familiarizar o praticante com a linguagem dos shástras.

O nádí shodhana pránáyáma é vulgarmente conhecido como a respiração alternada. A sequência base do pránáyáma é feita da seguinte forma:

a) Colocar as mãos em jñána mudrá, vishnu mudrá, nasagra mudrá ou outro;

b) obstruir a narina direita ou preferencialmente logo acima da narina bloqueando a passagem do ar;

c) inspirar (púraka) pela narina esquerda (respiração completa);

d) trocar a narina em actividade, obstruindo agora a narina esquerda;

f) expirar (rechaka) pela narina direita;

g) continuar o pránáyáma, inspirando pela narina direita e assim sucessivamente.

Este pránáyáma deve ser sempre agradável e nunca se deve perder o fôlego. Se isso acontecer deve diminuir-se a duração de cada fase da respiração. Note que a narina em actividade é alternada sempre que os pulmões estão cheios e nunca quando estão vazios. A inspiração é sempre feita pela mesma narina com que se expirou.

O nádí shodhana pránáyáma promove o bhúta shuddhi, nomeadamente a purificação do corpo subtil, ao nível das nádís, o que possibilita o despertar da kundaliní. Revigora o sistema nervoso e melhora o rendimento intelectual e desenvolve as faculdades mentais. Segundo Shivánanda este pránáyáma possibilita a levitação.

Ao nádí shodhana básico podem e devem ser acrescentados kúmbhaka (retenções), ritmo e bandhas. No entanto, o acréscimo deve ser feito sem pressa e no tempo individual de cada praticante.

O nádí shodhana pránáyáma é tradicionalmente considerado o pránáyáma mais importante. É o único citado na Shiva Samhitá. Deve ser praticado de forma diária e continua desde que se começa a fazer pánáyáma.

Nos textos de Hatha Yoga é comum a indicação de que os kriyás, entre os quais os shat karma, (dhauti, vasti, neti, trátaka, nauli e kapákabháti) devem ser praticados antes do prányáma por forma a permitir a limpeza e purificação do corpo denso e subtil (sthúla sharíra e súkshma sharíra). A Hatha Yoga Pradípiká precede mesmo a indicação sobre os shat karma com a indicação sobre o nádí shodhana prányáma tal a importância que lhe concede. Vejamos:

“Enquanto permanecerem impurezas nas nádís, o prána não poderá entrar no canal central, sushumná. Desta forma, o yogi não conseguirá o estado de umnaní avásthá[1] nem terá sucesso nas práticas. Somente quando todas as nádís que ainda estiverem impuras forem purificadas, é que o yogi poderá praticar pránáyáma com sucesso. Portanto, o pránáyáma deverá ser praticado diariamente, com um estado mental em que predomine sattva[2], até que sushumná fique livre de impurezas.” (II, 4-6).

Em seguida dá-se a descrição do nádí shodhana pránáyáma:

“Em padmásana, o yogi deve inalar pela narina esquerda e, após reter a respiração tanto quanto lhe seja possível, deve expirar pela narina direita. Na continuação, deve-se inalar pela narina direita, praticar kúmbhaka como antes e expirar pela esquerda. Depois do rechaka, deve-se fazer púraka pela mesma narina. O kúmbhaka deve ser mantido o máximo possível e depois expirar-se lentamente. Ao inspirar prána através de ídá, deve-se exalar através de pingalá, inspira-se de novo por pingalá e exala-se por ídá, depois de ter retido a respiração o máximo de tempo. O yogi que se aperfeiçoar na prática da ética e que praticar esta respiração alternada, purificará as suas nádís em três meses.” (II, 7-10).

Confrontemos com o que nos diz a Gheranda Samhitá:

“Sentado em padmásana, depois da adoração do Guru como ensinado pelo Professor, deve ele levar a cabo a purificação das nádís para obter sucesso no pránáyáma. Concentrado no váyu bija (Yam), repleto de energia e de cor esfumada, deve inspirar pela narina esquerda, repetindo o bija dezasseis vezes. Isto é o púraka. Deve reter a respiração por um período de sessenta e quatro repetições do mantra. Isto é o kúmbhaka. Depois deve expulsar o ar lentamente pela narina direita durante um período correspondente a trinta e duas repetições do mantra.

O centro do abdómen é o assento do agnitattva. Eleve-se agni desse local, junte-se com o prithivi tattva e contemple essa fusão de luz. Depois, repetindo dezasseis vezes o agni bija (Ram), deve inspirar pela narina direita, reter durante sessenta e quatro repetições do mantra e expulsar o ar pela narina esquerda pelo período correspondente a trinta e duas repetições do mantra.

Então fixe o olhar na ponta do nariz e contemplando, ali, o reflexo luminoso da lua, deve inspirar pela narina esquerda repetindo o bija Tham dezasseis vezes; depois reter o ar pela repetição do mantra Vam sessenta e quatro vezes. Entretanto visualize que o néctar flúi da lua na ponta do nariz e que corre pelos canais do corpo e os purifica. Mantendo a visualização, expirar repetindo trinta e duas vezes o prithivi bija lam.

Através destes três pránáyámas as nádís são purificadas. Então firmemente sentado em ásana pode começar a prática regular do pránáyáma.” (V, 38-45).

Na indicação da Hatha Yoga Pradipika o texto limitava-se a acrescentar o antar kúmbhaka, a retenção com ar, e a dar uma indicação sobre o período mínimo de prática. Aliás, a indicação dos três meses de prática continua para realização do nádíshuddhi é corrente, frequente e quase unânime na literatura.

Já a Gheranda Samhita, tráz-nos algumas “novidades”.

Nos textos tantricos e de Yoga de influência notoriamente tantrica como o Hatha Yoga e o Laya Yoga, aquela descrição do nádí shodhana pránáyáma é também utilizada como suporte para o nádi shuddhi ou bhúta shuddhi pránáyáma. Nádí shuddhi traduz-se por purificação das nádis, enquanto bhúta shuddhi indo mais de encontro ao cerne da descrição traduz-se como a purificação dos elementos (bhúta).

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Como ensinam o Sámkhya e o Tantra, o corpo físico denso, como de resto todo o universo material, são constituídos por cinco elementos básicos, chamados bhútas ou mahábhútas. São eles, do mais denso para o mais subtil, prithivi (terra), apas (água), tejas (fogo), váyu (ar), akasha (eter). Estes elementos não devem ser interpretados em sentido literal, mas sim enquanto princípios (tattvas), sólido, aquoso ou liquido, ígneo ou luminoso, gasoso ou do movimento, e etéreo ou da vacuidade, respectivamente.

Ora cada um destes tattvas tem correspondência com os cinco primeiros chakras. Assim, o prithivi tattva tem o seu assento no múládhára chakra, o apas tattva no swádhisthána chakra, o tejas tattva (também chamado de agni tattva) no manipura chakra, o váyu tattva no anaháta chakra, e o akasha tattva no visuddha chakra. Cada um destes tattvas são representados simbolicamente nas imagens que se desenharam dos chakras. Assim, como descreve o Sat Chakra Nirupana, o elemento terra (prithivi) representa-se por um quadrado cor de açafrão, o elemento água (apas) por uma meia lua crescente de cor branca, o elemento fogo (tejas) por um triângulo invertido vermelho flamejante, o elemento ar (váyu) por uma hexagono de cor enegrecida (cinza), e o elemento eter (akasha) por um circulo de cor branca.

Quando o texto se refere ao váyu bija sabemos que se refere ao bija-mantra do chakra com o qual aquele tattva (o elemento váyu) tem relação, no caso o anaháta chakra. Através daquele bija pode querer-se potenciar o bhúta tattva (o elemento) ou o próprio chakra conforme a mentalização. O mesmo raciocínio vale para os restantes bijas citados no texto.

Vejamos agora o bija Tham:

O bija tham é um dos sub-bijas do manipura chakra. Ou seja, é o som produzido pelo prána a circular numa das dez nádís principais que afluem ao chakra, cada uma das quais representada por uma pétala da flor de lótus com o seu bija correspondente grafado. Começando a contar da esquerda para a direita partindo eixo é a quinta pétala. A título de exemplo veja-se o símbolo do tejas, o triângulo vermelho, e nele inscrito o bija mantra do chakraRam.

No entanto, não parece ser a esse bija que o texto se refere. Já na parte final da descrição faz-se referência à lua. Esta referência não deve ser entendida no sentido literal mas sim como uma metáfora ao soma ou indu (que significa lua) chakra que se diz libertar o nectar da imortalidade, o amrita. O bija Tham é o bija deste chakra que se situa ligeiramente acima do ájñá chakra dentro da chitriní nádí[3] e que o Kankálamáliní Tantra situa no pericarpo do sahásrara chakra.

manipura_chakra 

A verdade é que o som deste bija não é o mesmo som do sub-bija do manipura chakra atrás referido. Enquanto o som produzido por este (sub-bija do manipura) é dental, aquele (do soma) tem um som cerebral. A diferença é facilmente perceptível se conhecermos o devanágari com o qual o sânscrito se escreve, ou melhor ainda se nos for passada por um verdadeiro Mestre (Guru), motivo pelo qual o Tantra concede tanta importância à iniciação.

O ritmo do prányáma é 1-4-2-0, contando 16 tempos para inspirar, 64 para reter e 32 para expirar. Neste padrão existem vários outros exemplos citados na literatura clássica. Em todos eles o aspecto purificatório do bhúta shuddhi é potencializado pelo uso do mantra e das técnicas de concentração e visualização. Em alguns dos exemplos os bijas usados variam ligeiramente, mas em todos eles se faz uso dos bijas para estimular o tattva correspondente e através dele, ou melhor, através da visualização a ele associada, produzir o bhúta e nádí shúddhi.

No exemplo dado, o processo purificatório consiste numa prática interna subtil de secar e queimar. O secar é levado a cabo através do bija (Yam) do elemento ar (váyu) associado à respiração e à mentalização. O queimar é levado a cabo a através do bija (Ram) do elemento fogo (tejas) associado à respiração e à mentalização. O processo purificatório é seguido por um novo processo de reenergização que consiste em refazer e tornar sólido e estável o corpo subtil. O novo corpo é feito com o mantra Tham associado à respiração e à mentalização, e a estabilidade e solidez são dadas ao corpo através do bija (Lam) do elemento terra (prithivi) associado à respiração e à mentalização.

Este processo refere-se não ao corpo denso mas ao corpo subtil e nele a mentalização tem um papel essencial. Os bija mantras actuam através do prána[4] que põem em movimento.

Como se disse, outros mantras são também utilizados noutras descrições. Shyam Sundar Goswami fez um estudo comparativo das indicações dadas nos shástras e encontrou a base mais comum deste bhúttashuddhi pránáyáma[5], com o ritmo 1-4-2-0 no tempo 16-64-32:

1 - inspirar pela narina esquerda, reter com ar, trocar a narina em actividade, obstruindo agora a narina esquerda, expirar pela narina direita, sempre com manásika japa Yam e a visualização;

2 - inspirar pela narina direita, reter com ar, trocar a narina em actividade, obstruindo agora a narina direita, expirar pela narina esquerda, sempre com manásika japa Ram e a visualização;

3 - inspirar pela narina esquerda com a repetição mental do mantra Tham e visualização; reter com ar com o japa Vam, expirar pela narina direita com o japa mental do mantra Lam e a visualização.

O processo purificatório dos bijas consiste então em cinco estapas:

1. Secar com o mantra Yam,

2. Queimar e remover com o mantra Ram,

3. Fluxo de amrita com o mantra Tham,

4. Irradiação a partir do indu chakra com o mantra Vam,

5. Estabilidade com o mantra Lam.

A estas visualizações podem ainda ser associadas as formas e cores, atrás enunciadas, correspondentes a cada um dos mahábhútas. O poder dos bijas mantras é estimulado pelo japa (a repetição), pela respiração e pela concentração e visualização intensas.

Cabe ainda dizer que não será por acaso que ao bija Yam corresponde a inspiração pela esquerda, retenção e expiração pela direita, enquanto ao bija Ram corresponde a inspiração pela direita, retenção e expiração pela esquerda. De facto, não é indiferente que a inspiração seja feita pela narina correspondente à nádí positiva – pingalá – ou pela narina correspondente à nádí negativa – idá. Segundo a teoria tradicional do Yoga, a narina de polaridade positiva ou solar corresponde à na narina direita, enquanto que a narina de polaridade negativa ou lunar corresponde à a narina esquerda. A respiração pela nádí solar ou positiva produz calor, actividade, acção, energia, é aferente. Já a respiração pela nádí negativa ou lunar, é refrescante, eferente, inibitória para os órgãos, produz passividade, introversão. Visto isto, fácil é perceber que cada bija mantra está associado à respiração pela nádí que melhor cumpre o fim do bhútashuddhi.

Por fim, vejamos o que nos diz a Shiva Samhitá:

“Então, deixem o patricante experiente fechar com o polegar direito a pingalá, inspirar por idá, e manter o ar confinado, suspendendo a respiração, pelo tempo que conseguir e depois expirar lentamente, e não com força, pela narina direita. De novo, inspirar pela narina direita, e parar de respirar enquanto a força permitir. Então, expirar pela narina esquerda, não violentamente, mas lenta e gentilmente. De acordo com este Yoga, pratique vinte kúmbhakas. Deve-se praticar diariamente, sem negligência ou preguiça, e livre das dualidades.” (III, 22-24).

“A força vital (prána) é, na verdade, a melhor amiga; a força vital é, na verdade, a melhor companheira. Ó magnífico! com toda a certeza não existe parente comparável à força vital” Shiva Svarodaya.



[1] Como ensina o Prof. Pedro Kupfer, é o mesmo estado que Patañjali chama de Nirvikalpa Samádhi.

[2] Satva é um dos gunas (guna significa qualidade, propriedade ou atributo) da Prakriti (mundo manifestado, matéria, natureza, substância cósmica). Os outros dois são tamas e rajas. A diversidade e a complexidade da natureza devem-se à interação, alteração e às variações desses três elementos. Assim, tamas significa inércia; rajas, movimento e sattva estabilidade. Suas funções são, respectivamente, a de limitar, a de ativar e a de manifestar a consciência através dos seus mais variados veículos. O guna sattva actua no homem como um estado de compreensão, satisfação, tranquilidade, reflexão, alegria e felicidade. Além de outras funções, facilita a percepção de estados mais subtis da Natureza.

[3] Chitriní nádí é uma das nádís que existem dentro da sushumná nádí. A outra é a vajriní nádí que envolve a chitriní.

[4] Aqui utiliza-se o termo prána no seu conceito genérico de váyu. O prána genérico (ou váyu) divide-se em cinco pránas ou váyus principais, que são: prána, apána, udána, samána e vyána.

[5] Swami Shivananda também cita este pránáyáma em The Science of Pranayama. Livro que se encontra disponível online no site www.yoga.pro.br.


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