Vimos dar início a um
estudo comparativo de alguns pránáyámas
nos textos clássicos do Hatha Yoga, o Hatha Yoga Pradipika, Gueranda Sámhita e Shiva Sámhita, com o que
se pretende dar a conhecer parte daqueles textos bem como familiarizar o
praticante com a linguagem dos shástras.
O nádí shodhana pránáyáma é vulgarmente conhecido como a respiração
alternada. A sequência base do pránáyáma
é feita da seguinte forma:
a) Colocar as mãos em jñána mudrá, vishnu mudrá, nasagra mudrá
ou outro;
b) obstruir a narina direita
ou preferencialmente logo acima da narina bloqueando a passagem do ar;
c) inspirar (púraka) pela narina esquerda (respiração
completa);
d) trocar a narina em
actividade, obstruindo agora a narina esquerda;
f) expirar (rechaka) pela narina direita;
g) continuar o pránáyáma, inspirando pela narina
direita e assim sucessivamente.
Este pránáyáma deve ser sempre agradável e nunca se deve perder o fôlego.
Se isso acontecer deve diminuir-se a duração de cada fase da respiração. Note
que a narina em actividade é alternada sempre que os pulmões estão cheios e
nunca quando estão vazios. A inspiração é sempre feita pela mesma narina com
que se expirou.
O nádí shodhana pránáyáma promove o bhúta shuddhi, nomeadamente a purificação do corpo subtil, ao nível
das nádís, o que possibilita o
despertar da kundaliní. Revigora o
sistema nervoso e melhora o rendimento intelectual e desenvolve as faculdades
mentais. Segundo Shivánanda este pránáyáma possibilita a levitação.
Ao nádí shodhana básico podem e devem ser acrescentados kúmbhaka (retenções), ritmo e bandhas. No entanto, o acréscimo deve
ser feito sem pressa e no tempo individual de cada praticante.
O nádí shodhana pránáyáma é tradicionalmente considerado o pránáyáma mais importante. É o único
citado na Shiva Samhitá. Deve ser
praticado de forma diária e continua desde que se começa a fazer pánáyáma.
Nos textos de Hatha Yoga é
comum a indicação de que os kriyás, entre os quais os shat karma, (dhauti, vasti, neti, trátaka, nauli e kapákabháti) devem ser
praticados antes do prányáma por forma a permitir a limpeza e purificação do
corpo denso e subtil (sthúla sharíra e
súkshma sharíra). A Hatha Yoga
Pradípiká precede mesmo a indicação sobre os shat karma com a indicação sobre o nádí shodhana prányáma tal a importância que lhe concede. Vejamos:
“Enquanto permanecerem
impurezas nas nádís, o prána não poderá entrar no canal
central, sushumná. Desta forma, o yogi não conseguirá o estado de umnaní avásthá[1] nem terá sucesso
nas práticas. Somente quando todas as nádís
que ainda estiverem impuras forem purificadas, é que o yogi poderá praticar pránáyáma
com sucesso. Portanto, o pránáyáma deverá
ser praticado diariamente, com um estado mental em que predomine sattva[2], até que sushumná fique livre de impurezas.” (II,
4-6).
Em seguida dá-se a
descrição do nádí shodhana pránáyáma:
“Em padmásana, o yogi deve
inalar pela narina esquerda e, após reter a respiração tanto quanto lhe seja
possível, deve expirar pela narina direita. Na continuação, deve-se inalar pela
narina direita, praticar kúmbhaka
como antes e expirar pela esquerda. Depois do rechaka, deve-se fazer púraka
pela mesma narina. O kúmbhaka deve
ser mantido o máximo possível e depois expirar-se lentamente. Ao inspirar prána através de ídá, deve-se exalar através de pingalá,
inspira-se de novo por pingalá e
exala-se por ídá, depois de ter retido a respiração o máximo de tempo. O yogi que se aperfeiçoar na prática da
ética e que praticar esta respiração alternada, purificará as suas nádís em três meses.” (II, 7-10).
Confrontemos com o que nos
diz a Gheranda Samhitá:
“Sentado em padmásana, depois da adoração do Guru como ensinado pelo Professor, deve
ele levar a cabo a purificação das nádís
para obter sucesso no pránáyáma.
Concentrado no váyu bija (Yam), repleto de energia e de cor
esfumada, deve inspirar pela narina esquerda, repetindo o bija dezasseis vezes. Isto é o púraka.
Deve reter a respiração por um período de sessenta e quatro repetições do mantra. Isto é o kúmbhaka. Depois deve expulsar o ar lentamente pela narina direita
durante um período correspondente a trinta e duas repetições do mantra.
O centro do abdómen é o
assento do agnitattva. Eleve-se agni desse local, junte-se com o prithivi tattva e contemple essa fusão
de luz. Depois, repetindo dezasseis vezes o agni
bija (Ram), deve inspirar pela
narina direita, reter durante sessenta e quatro repetições do mantra e expulsar o ar pela narina
esquerda pelo período correspondente a trinta e duas repetições do mantra.
Então fixe o olhar na
ponta do nariz e contemplando, ali, o reflexo luminoso da lua, deve inspirar
pela narina esquerda repetindo o bija Tham
dezasseis vezes; depois reter o ar pela repetição do mantra Vam sessenta e quatro vezes. Entretanto visualize que o néctar
flúi da lua na ponta do nariz e que corre pelos canais do corpo e os purifica.
Mantendo a visualização, expirar repetindo trinta e duas vezes o prithivi bija lam.
Através destes três pránáyámas as nádís são purificadas. Então firmemente sentado em ásana pode começar a prática regular do pránáyáma.” (V, 38-45).
Na indicação da Hatha Yoga Pradipika o texto limitava-se
a acrescentar o antar kúmbhaka, a
retenção com ar, e a dar uma indicação sobre o período mínimo de prática.
Aliás, a indicação dos três meses de prática continua para realização do nádíshuddhi é corrente, frequente e
quase unânime na literatura.
Já a Gheranda Samhita, tráz-nos algumas “novidades”.
Nos textos tantricos e de
Yoga de influência notoriamente tantrica como o Hatha Yoga e o Laya Yoga,
aquela descrição do nádí shodhana
pránáyáma é também utilizada como suporte para o nádi shuddhi ou bhúta shuddhi
pránáyáma. Nádí shuddhi traduz-se
por purificação das nádis, enquanto bhúta shuddhi indo mais de encontro ao
cerne da descrição traduz-se como a purificação dos elementos (bhúta).
Como ensinam o Sámkhya e o Tantra, o
corpo físico denso, como de resto todo o universo material, são constituídos
por cinco elementos básicos, chamados bhútas
ou mahábhútas. São eles, do mais
denso para o mais subtil, prithivi (terra), apas (água), tejas (fogo), váyu (ar), akasha (eter). Estes elementos não
devem ser interpretados em sentido literal, mas sim enquanto princípios (tattvas), sólido, aquoso ou liquido,
ígneo ou luminoso, gasoso ou do movimento, e etéreo ou da vacuidade,
respectivamente.
Ora cada um destes tattvas tem correspondência com os cinco
primeiros chakras. Assim, o prithivi tattva tem o seu assento no múládhára chakra, o apas tattva no swádhisthána
chakra, o tejas tattva (também
chamado de agni tattva) no manipura chakra, o váyu tattva no anaháta
chakra, e o akasha tattva no visuddha chakra. Cada um destes tattvas são representados simbolicamente
nas imagens que se desenharam dos chakras. Assim, como descreve o Sat Chakra Nirupana, o elemento terra (prithivi) representa-se por um quadrado
cor de açafrão, o elemento água (apas)
por uma meia lua crescente de cor branca, o elemento fogo (tejas) por um triângulo invertido vermelho flamejante, o elemento
ar (váyu) por uma hexagono de cor
enegrecida (cinza), e o elemento eter (akasha)
por um circulo de cor branca.
Quando o texto se refere
ao váyu bija sabemos que se refere ao
bija-mantra do chakra com o qual aquele tattva
(o elemento váyu) tem relação, no
caso o anaháta chakra. Através
daquele bija pode querer-se potenciar
o bhúta tattva (o elemento) ou o
próprio chakra conforme a mentalização. O mesmo raciocínio vale
para os restantes bijas citados no
texto.
Vejamos agora o bija Tham:
O bija tham é um dos sub-bijas
do manipura chakra. Ou seja, é o som
produzido pelo prána a circular numa
das dez nádís principais que afluem
ao chakra, cada uma das quais
representada por uma pétala da flor de lótus com o seu bija correspondente grafado. Começando a contar da esquerda para a
direita partindo eixo é a quinta pétala. A título de exemplo veja-se o símbolo
do tejas, o triângulo vermelho, e
nele inscrito o bija mantra do chakra – Ram.
No entanto, não parece ser
a esse bija que o texto se refere. Já
na parte final da descrição faz-se referência à lua. Esta referência não deve
ser entendida no sentido literal mas sim como uma metáfora ao soma ou indu (que significa lua)
chakra que se diz libertar o nectar da imortalidade, o amrita. O bija Tham é o bija deste chakra que se situa ligeiramente
acima do ájñá chakra dentro da chitriní nádí[3] e que o Kankálamáliní Tantra situa no pericarpo
do sahásrara chakra.
A verdade é que o som deste
bija não é o mesmo som do sub-bija do manipura chakra atrás referido.
Enquanto o som produzido por este (sub-bija
do manipura) é dental, aquele (do
soma) tem um som cerebral. A
diferença é facilmente perceptível se conhecermos o devanágari com o qual o sânscrito se escreve, ou melhor ainda se
nos for passada por um verdadeiro Mestre (Guru),
motivo pelo qual o Tantra concede
tanta importância à iniciação.
O ritmo do prányáma é 1-4-2-0, contando 16 tempos
para inspirar, 64 para reter e 32 para expirar. Neste padrão existem vários
outros exemplos citados na literatura clássica. Em todos eles o aspecto
purificatório do bhúta shuddhi é
potencializado pelo uso do mantra e
das técnicas de concentração e visualização. Em alguns dos exemplos os bijas usados variam ligeiramente, mas em
todos eles se faz uso dos bijas para
estimular o tattva correspondente e
através dele, ou melhor, através da visualização a ele associada, produzir o bhúta e nádí shúddhi.
No exemplo dado, o
processo purificatório consiste numa prática interna subtil de secar e queimar.
O secar é levado a cabo através do bija (Yam)
do elemento ar (váyu) associado à
respiração e à mentalização. O queimar é levado a cabo a através do bija (Ram) do elemento fogo (tejas) associado à respiração e à
mentalização. O processo purificatório é seguido por um novo processo de
reenergização que consiste em refazer e tornar sólido e estável o corpo subtil.
O novo corpo é feito com o mantra Tham associado
à respiração e à mentalização, e a estabilidade e solidez são dadas ao corpo
através do bija (Lam) do elemento terra (prithivi) associado à respiração e à
mentalização.
Este processo refere-se
não ao corpo denso mas ao corpo subtil e nele a mentalização tem um papel
essencial. Os bija mantras actuam
através do prána[4] que põem em
movimento.
Como se disse, outros mantras são também utilizados noutras descrições. Shyam Sundar Goswami fez um
estudo comparativo das indicações dadas nos shástras
e encontrou a base mais comum deste bhúttashuddhi
pránáyáma[5], com o ritmo
1-4-2-0 no tempo 16-64-32:
1 - inspirar pela narina
esquerda, reter com ar, trocar a narina em actividade, obstruindo agora a
narina esquerda, expirar pela
narina direita, sempre com manásika japa
Yam e a visualização;
2 - inspirar pela narina
direita, reter com ar, trocar a narina em actividade, obstruindo agora a narina
direita, expirar pela narina esquerda,
sempre com manásika japa Ram e a
visualização;
3 - inspirar pela narina esquerda com a repetição
mental do mantra Tham e visualização;
reter com ar com o japa Vam, expirar pela narina direita com o japa mental do mantra Lam e a visualização.
O processo purificatório dos
bijas consiste então em cinco estapas:
1. Secar com o
mantra Yam,
2. Queimar e remover com o mantra Ram,
3. Fluxo de amrita com o mantra Tham,
4. Irradiação a partir do indu chakra com o mantra Vam,
5. Estabilidade com o mantra Lam.
A estas visualizações podem ainda ser associadas as formas e
cores, atrás enunciadas, correspondentes a cada um dos mahábhútas. O poder dos bijas
mantras é estimulado pelo japa (a
repetição), pela respiração e pela concentração e visualização intensas.
Cabe ainda dizer que não
será por acaso que ao bija Yam corresponde
a inspiração pela esquerda, retenção e expiração pela direita, enquanto ao bija Ram corresponde a inspiração pela
direita, retenção e expiração pela esquerda. De facto, não é indiferente que a
inspiração seja feita pela narina correspondente à nádí positiva – pingalá –
ou pela narina correspondente à nádí
negativa – idá. Segundo a teoria
tradicional do Yoga, a narina de polaridade positiva ou solar corresponde à na
narina direita, enquanto que a narina de polaridade negativa ou lunar
corresponde à a narina esquerda. A respiração pela nádí solar ou positiva produz calor, actividade, acção, energia, é aferente. Já a respiração pela nádí negativa ou lunar, é refrescante, eferente, inibitória para os
órgãos, produz passividade, introversão. Visto isto, fácil é perceber que cada bija mantra está associado à respiração
pela nádí que melhor cumpre o fim do bhútashuddhi.
Por fim, vejamos o que nos
diz a Shiva Samhitá:
“Então, deixem o patricante
experiente fechar com o polegar direito a pingalá,
inspirar por idá, e manter o ar
confinado, suspendendo a respiração, pelo tempo que conseguir e depois expirar
lentamente, e não com força, pela narina direita. De novo, inspirar pela narina
direita, e parar de respirar enquanto a força permitir. Então, expirar pela
narina esquerda, não violentamente, mas lenta e gentilmente. De acordo com este
Yoga, pratique vinte kúmbhakas.
Deve-se praticar diariamente, sem negligência ou preguiça, e livre das dualidades.”
(III, 22-24).
“A força vital (prána) é, na verdade, a melhor amiga; a
força vital é, na verdade, a melhor companheira. Ó magnífico! com toda a
certeza não existe parente comparável à força vital” Shiva Svarodaya.
[1] Como ensina o Prof. Pedro Kupfer, é o mesmo estado que
Patañjali chama de Nirvikalpa Samádhi.
[2] Satva é um dos gunas (guna significa qualidade, propriedade ou
atributo) da Prakriti (mundo
manifestado, matéria, natureza, substância cósmica). Os outros dois são tamas e
rajas. A diversidade e a
complexidade da natureza devem-se à interação, alteração e às variações desses
três elementos. Assim, tamas
significa inércia; rajas, movimento e
sattva estabilidade. Suas funções
são, respectivamente, a de limitar, a de ativar e a de manifestar a consciência
através dos seus mais variados veículos. O guna
sattva actua no homem como um estado de compreensão, satisfação,
tranquilidade, reflexão, alegria e felicidade. Além de outras funções, facilita
a percepção de estados mais subtis da Natureza.
[3] Chitriní nádí é uma das nádís
que existem dentro da sushumná nádí.
A outra é a vajriní nádí que envolve
a chitriní.
[4] Aqui
utiliza-se o termo prána no seu
conceito genérico de váyu. O prána genérico (ou váyu) divide-se em cinco pránas
ou váyus principais, que são: prána, apána, udána, samána e vyána.
[5] Swami Shivananda
também cita este pránáyáma em The Science of Pranayama. Livro que se encontra disponível online no site www.yoga.pro.br.
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